“Faz 800 anos de um encontro que não foi uma notícia”

0
950

Que o Senhor vos dê a sua paz!

Estamos celebrando oitocentos anos de um acontecimento muito importante para o mundo franciscano: os oitocentos anos da viagem de São Francisco de Assis à Terra Santa. Este fato, talvez, hoje não atraia a atenção da sociedade, talvez não se difunda como a moda do momento, nem tenha valor a ponto de ser publicado nas notícias televisivas e jornais mais importantes do mundo. Este ano de dois mil e dezenove (2019), de fato, estamos recordando algo que também foi esquecido pela maioria dos meios de comunicação cruzados de mil duzentos e dezenove (1219) onde aconteceu o encontro entre São Francisco de Assis e o Sultão do Egito al-Kamil.

Quem teria dado muita atenção ou gasto muito tempo, tinta e pergaminho para registrar os eventos no Oriente Médio de mais um místico do século treze (XIII)? Aquele Francisco de Assis, diante da maioria dos grandes do exército cruzado, era apenas um pobre místico. Aquele homem de baixa estatura, de saco marrom rasgado, de pés descalços, mendigando comida e alojamento. Ele parecia ser um daqueles muitos que surgiram no mundo católico incitando ali a guerra santa, profetizando a vitória dos exércitos cristãos. Aquele homem do centro da Itália, rodeado de outros como ele, que queria ser mártir… Não disse nada de novo, não trouxe nada de novo, para quem não o conhecia, era como tudo os outros.

Muito poucos notáveis cruzados foram aqueles que sabiam, que os Irmãos Menores viviam uma forma de religião com a aprovação dada pelo grande Papa Inocêncio, Terceiro (III). Alguns dos clérigos tinham visto o seu número de seguidores espalhados por todo o mundo. Eles estavam pregando o evangelho, em extrema pobreza e sem fazer disputas ou brigas, limpando igrejas, cuidando de leprosos, trabalhando para comer e pedindo para viver. Essa era a informação que os cruzados tinham. E, no entanto, sua estadia em Damieta no Egito para muitas das testemunhas oculares não foi de grande importância para ser perpetuado nas crônicas oficiais. Não eram notícias para a posteridade. Muitos não sabiam que Francisco estava entre eles apenas por causa do amor a Cristo, para testemunhá-lo, anunciá-lo até o martírio e isso não era novidade entre as preocupações de uma guerra. Não havia tempo na guerra de Damieta, teria que lutar até o fim para resgatar a Terra de Cristo, não havia tempo naquela situação para ouvir Francisco, que pregava o amor de Cristo.

É este amor de Cristo que coloca Francisco em movimento para superar os limites do cristianismo, deixando as costas marítimas da Itália em julho de mil duzentos e dezenove (1219) para ir a Terra Santa. Este amor a Cristo, na sua máxima expressão de martírio, leva-o a deixar tudo para lá ir, onde a guerra se destinava a reconquistar os Lugares Santos perdidos em mil cento e oitenta e sete (1187). Francisco nunca pensou em viajar nas terras da Síria e do Egito para resgatar os Lugares Santos. Ele nunca quis ser, o mediador pacifista do momento. Não! Francisco não era um daqueles que foram a guerra para usar o infortúnio humano para ganhar fama. Francisco não pensou em procurar fama imortal através da mediação entre o cristianismo e o islamismo. Entre os exércitos da quinta cruzada, foi o homem de paz que pregou o perdão de Cristo, o Evangelho de Cristo. E com seu modo simples de ser, não fazia notícia. Ele vai contra a corrente, contra o pensamento dos poderosos do momento e isto ontem como hoje não faz notícia. Não era o homem do espetáculo midiático; como todo bom cristão de todos os tempos não podia calar a mensagem do Evangelho, que ele seguia ao pé da letra como regra de vida. Ele estava lá, no Egito, porque queria deixar seu testemunho de amor a Cristo, o verdadeiro Deus, com seu próprio sangue.

Francisco chega ao Delta do Nilo em agosto de mil duzentos e dezenove (1219), enquanto a cidade de Damieta estava sendo sitiada pelos cruzados. A cidade de Damieta e sua posterior queda atrairão a atenção de todos os cronistas do momento. Essa era a notícia que todos queriam contar. O bispo de São João de Acre, Santiago de Vitry, juntamente com o Mestre Arnauld, serão um dos poucos não franciscanos que nos contaram o que Francisco de Assis fez junto com Frei Iluminado no Egito em setembro de mil duzentos e dezenove (1219). O bispo de Vitry se dá tempo para falar de Francisco porque, entre outras coisas, os sacerdotes de da sua Cidade Acre estavam se tornando franciscanos.

No mundo franciscano, os acontecimentos de Francisco nos são contados em abundância por seus biógrafos. Eles não estavam lá como cronistas oculares; não eram os repórteres do oficialismo franciscano. Tomás de Celano, S. Boaventura, recolhem os testemunhos dos Frades que estiveram com Francisco nos diversos momentos de sua vida. Os cronistas cruzados nos falam da episódios da vida do um homem raro de mais uma agnota de guerra. Os biógrafos franciscanos nos falam sobre o frade que era o irmão e pai fundador da Ordem; que já havia morrido e, ao mesmo tempo, já era venerado como um grande santo. Em todos estes acontecimentos escondia-se um mistério Divino que nos faz compreender o desígnio da Providência de Deus em todos estes eventos da viagem de Francisco.

Todos os cronistas e biógrafos nos dizem que, mais ou menos em meados de setembro de mil duzentos e dezenove (1219), Francisco pediu ao Delegado Pontifício, o Cardeal espanhol Juan Pelagio, permissão para passar pelas frentes de batalha, para ir e encontrar o Sultão al-Kamil, rei do Egito e feroz inimigo do mundo cristão. Dizem que Francisco junto com Frei Iluminado conseguiram passar os as frentes inimigas, que foram maltratados, mas ao final foram conduzidos são e salvos para se encontrarem com sultão de Egito. E, podemos pensar: lá estavam dois loucos de Deus, vestidos com um saco em forma de cruz, diante do homem mais poderoso do Islam. E ali estiveram, sem serem vistos por ninguém que podia fazer notícias, ignorados pelos cronistas, simplesmente por serem unos loucos, mas loucos que chamaram a atenção e curiosidade do Sultão.

Dizem-nos que Francisco anunciou Cristo abertamente a Malik al-Kamil como salvador e verdadeiro Deus, afinque o rei se convertesse e viesse a salvar a sua alma. Esta era notícia que o porta-voz de Cristo anunciava ao Sultão. O Sultão prestou atenção no que dizia Francisco e movido de surpresa que um inimigo arriscasse a própria vida para salvar a sua.
Embora este Sultão estivesse cheio de admiração pela rendição de Francisco, ele não se converteu, nem matou os cristãos que segundo sua lei deveriam morrer porque proclamavam uma doutrina diferente da fé do seu reino. Depois de algum tempo com o Sultão, Francisco foi levado em segurança para o acampamento dos Cruzados. Francisco não foi um mártir, não conseguiu a conversão do Sultão, não foi notícia para muitos. Deus, na sua providência, recompensaria o amor do seu servo. E não deixaria que este fato do encontro de Francisco com o Sultão ficasse como uma página, ignorada pelas agências de notícias da história da humanidade.

Francisco deixa Damieta a suas espadas, com uma sensação que seus planos tivessem fracassados, e fica em São João de Acre, na Terra Santa, até o início de mil duzentos e vinte (1220). Quem sabe, quem poderia dizer a sensação e a curiosidade das pessoas daquela Cidade sobre Francisco, depois de vê-lo voltar vivo do encontro do Sultão? Nunca saberemos este sentimento que, Francisco, sempre carregará em seu coração depois de ter conhecido o Sultão, nem o que o Sultão sentiu em si mesmo por Francisco. As notícias, as revistas de celebridades da época não nos podiam contar. Só nos atreveremos a dizer que este fato será notícia no cristianismo muitos anos depois.

Francisco regressa a Itália, talvez com um certo sentimento de fracasso. Neste fracasso do martírio, parece que Deus começa uma nova obra pela sua providência oculta a sabedoria humana. Francisco e o Sultão foram fundamentais para este plano. As Florezinhas dizem-nos que o Sultão deus a Francisco e a todos os irmãos vestidos com a corda como ele, uma permissão especial para se moverem por todos os seus territórios. E aqui nestes fatos vemos e encontramos uma semente que germinara na Terra Santa. Francisco vai embora, mas ficam na missão os irmãos mais valiosos. Estes começaram a mover-se por todos os territórios do Sultão, recordando sempre essa permissão especial de Malik al-Kamil concedida a Francisco. A partir desse momento, os Frades Menores deslocar-se-ão pelos territórios do Oriente Médio. Lá ficaram e viveram segundo lhes virá indicado por capítulo da Regra que Francisco escreveu especialmente depois da viagem ao Egito para todos os Frades que viveram em terras islâmicas.

Posteriormente, o número de frades no Oriente Médio aumenta com os conventos e as atividades. Nos séculos quatorze (XIV) e quinze (XV), os Frades Menores recuperaram o Santo Sepulcro, a Gruta de Belém, o Santo Cenáculo e o Túmulo de Maria. Nestes tempos a província da Terra Santa será dividida em Custódias, entre as quais, as Custódias da Síria, Armênia e Terra Santa. Os Frades Menores têm residências estáveis principalmente nas cidades portuárias com forte presença de Veneza, Gênova, Aragão e França, nos conventos localizados em Alexandria, Gaza, Trípoli, Larnaca, Famagusta e Rodas. A atividade missionária estender-se-á à Armênia Menor, à Síria, ao Líbano, ao Egito e à atual Palestina e Israel. O Papa Clemente VI, em mil trezentos e quarenta e dois (1342), instituirá a Custódia da Terra Santa, a fim de representar a Igreja Católica na Terra Santa, para a manutenção e cuidado dos Lugares Santos e a assistência aos peregrinos. Em mil quinhentos e cinquenta e um (1551), depois da expulsão do Convento do Monte Sião e da expropriação do Santo Cenáculo, começaram a formar-se as primeiras paróquias latinas em Jerusalém, Belém, Chipre, Alepo e Nazaré chegando ao atual número de vinte e três (23) Paróquias. As escolas foram formadas por causa da necessidade de educar as crianças sobretudo na fé cristã. A primeira escola da Terra Sana data de mim quinhentos e noventa e oito (1598) em Belém. Pouco a pouco aumentou o número de conventos, a atividade dos frades e o número de cristãos católicos. Assim, no final do século dezenove (XIX), encontramos uma província franciscana com um número considerável de frades e conventos enraizados no território e na cultura da Terra Santa, que se estende das águas do Nilo às montanhas da Anatólia, desde as ilhas gregas até o Jordão.

No final do século dezenove (XIX), a mudança institucional do Império Otomano abriu a possibilidade de reconstruir muitos dos santuários que a Custódia da Terra Santa havia recuperado em sua presença secular. Estes santuários são muitos dos setenta (70) santuários que hoje podemos visitar na Terra Santa. A mesma situação política favoreceu o aumento do número de escolas na Terra Santa. Atualmente, nas treze (13) escolas da Terra Santa estudam cerca de doze mil e quinhentos (12.500) alunos. Nestas escolas, mais do que em qualquer outro lugar, se educa ao respeito do ser humano por aquilo que é imagem e semelhança de Deus. No acolhimento do outro, é perpetuada dia após dia, educando para que todos possam aceitar e conviver bem com a diversidade dos credos ali presentes. Em todas as escolas da Terra Santa, católicos, ortodoxos e muçulmanos estudam da mesma maneira. A esta louvável ação educativa se somam as bolsas de estudos que a Custódia da Terra Santa oferece aos jovens para que façam seus estudos superiores.
No início de mil novecentos (1900) foi fundada no convento da Flagelação de Jerusalém, o Studium Biblicum Francescanum, que é hoje a Faculdade de Estudos Bíblicos e Arqueologia, uma casa de estudo conhecida hoje pelos grandes professores de arqueologia cristã da Terra Santa. Os modernos meios de navegação, especialmente os navios a vapor, favoreceram o aumento das peregrinações à Terra Santa. Assim foram reestruturadas as casas antigas para peregrinos, chamadas Casa Nova, de Belém, Jerusalém e Nazaré, o Monte Tabor, Tiberíades, Ain Karem e Damasco. Hoje, junto com eles, há novas estruturas para acolher grupos de jovens em Jerusalém, Jerico, Cafarnaum e Tabga.

Junto com as obras sociais, em favor da população árabe-cristã local, sempre crescente até meados do século vinte (XX), os frades inventaram o trabalho das casas. Para cuidar das populações locais, os Frades da Custódia compraram propriedades nas principais cidades onde havia paróquias para hospedar os cristãos locais. Muitas vezes os cristãos não podiam ter livremente as suas propriedades para viver. Hoje as casas só em Jerusalém chegam a quinhentas sem contar, as casas de Belém e as de outras regiões.

A fim de manter economicamente as obras da Custódia da Terra, a Santa Sé e os reinos católicos europeus, como Espanha, Portugal, França, Veneza, Nápoles e outros, criaram os Comissariados da Terra Santa a partir de meados do século dezesseis (XVI). Atualmente, os Comissariados estão distribuídos em setenta e um (71) países. Eles têm a função principal de promover e guardar a coleção pontifícia da Sexta-feira Santa Pro Terra Santa, tornar conhecida a Terra Santa, promover a ajuda aos lugares santos e acompanhar as peregrinações na Terra Santa. Além dos comissários, a Custódia tem duas fundações e uma ONG.

Oitocentos anos depois daquele encontro de São Francisco com o Sultão, quis a providência que a semente do fracassado martírio de Francisco, nascesse uma grande árvore chamada Custódia da Terra Santa. Esta árvore é conhecida apenas como o desígnio da sabedoria de Deus, Francisco nem sequer pensou nisso. Hoje, esta árvore está cheia de frutos, cultivados pela providente mão de Deus. Seu fruto mais precioso é o resgate dos santuários cristãos para o culto da cristandade. Os seus ramos são os da paz, do respeito e da compreensão. As suas raízes fortes são a fé, a tenacidade, a esperança e a caridade cristã. Hoje, a árvore da presença franciscana na Terra Santa conta com os trezentos (300) Frades Menores da Custódia e os cem (100) Frades Menores de Egito, que juntos continuam o trabalho dos primeiros Franciscanos que chegaram desarmados de espadas entre os cruzados. Lá estão eles, mudos e silenciosos para o mundo, perpetuando o passar do tempo a ação do Espírito em sua igreja. Aqui, Hic, na Terra Santa estão sem dar notícias. Assim foram todos os que viveram por amor à Terra Santa. Hoje assim seguem prestando um constante e silencioso serviço as pedras vivas que são os irmãos presentes na ferida Síria. Os Custódios das pedras da memória e das pedras vivas continuam depois de oitocentos (800) anos de vida, procurando ser fiéis a vocação recebida procurando imitar o excessivo amor de Francisco por Cristo pobre e crucificado; vivem cada dia confiando na ação providencial do Pai Onipotente, despreocupando-se totalmente estar entre as páginas das melhores notícias do dia….

Fr. Marcelo Ariel Cichinelli, ofm
Moderador da Formação Permanete
Discreto da Terra Santa
Guardião do Convento de São Salavador da Custódia da Terra Santa