Neste árido e quente mês de setembro, no Brasil, somos convidados a refletir quanto à importância da Palavra de Deus. É um mês propício para tal, pois, assim como acontece ao deserto do Neguev, quando este é regado pelas chuvas da primavera, neste nosso mês da primavera meridional seremos regados por aquela chuva de graças que desce do céu e para lá não retornam sem produzir seu efeito (c.f Is 55,10-11).
Tomemos como objeto de análise a carta aos Hebreus. Várias são as motivações para esta escolha: a carta aos Hebreus nos dá a dimensão do Filho de Deus enquanto aquele que por último nos fala, aquele que tem a palavra definitiva. Ele mesmo é a Palavra de Deus, a expressão do ser Divino (Hb 1,2-3). Em uma das suas homilias natalinas, especificamente na missa do Galo, Bento XVI fez uma poderosa afirmação que mais tarde fez constar em sua exortação pós-sinodal Verbum Domini, baseando-se em Orígenes ao citar o profeta Isaías e o próprio apóstolo Paulo: “E o Verbo de Deus abreviou-se… a Palavra eterna fez-se pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura” (n° 12).
Outra grande motivação para a escolha desta carta está no aspecto sacerdotal que ela contém, sem dúvida explanado de modo único. Coaduna com estes argumentos anteriores, setembro ser o mês aglutinador da Festa da Exaltação da Santa Cruz e a memória das Dores da Virgem Mãe, ambas celebrações realçam a obediência incondicional a Deus, expressão máxima e mais profunda do sacrifício sacerdotal de Cristo, temas estes caros à epístola.
Na carta aos Hebreus o tema mais importante de toda exposição é o Sumo Sacerdócio de Cristo, um sacerdócio que se assenta à direita e a majestade de Deus Pai (Hb 8,1). É impressionante como em nossos tempos alguns querem ler a mensagem central deste Tratado do Sacerdócio de Jesus como se fosse a expressão de um sacerdócio comum dos fiéis.
Na carta aos Hebreus o tema mais importante de toda exposição é o Sumo Sacerdócio de Cristo, um sacerdócio que se assenta à direita e a majestade de Deus Pai (Hb 8,1).
O Cardeal Albert Vanhoye, perito em Sagradas Escrituras e possuidor de várias obras voltadas para a Carta aos Hebreus, destaca a importância de Cristo em sua função sacerdotal através da solidariedade com os homens (VANHOYE, A. 2006, p. 520); solidário, sim; mediador, também; mas, Sumo, Único e Sacerdote Eterno, que entra num santuário não feito por mãos humanas (cf Hb 9,24) para realizar de modo perpétuo o que o santuário levítico-mosaico era apenas sombra; portanto, é sim o tema central desta carta, o Sacerdócio de Cristo (único e irrepetível), cujo detalhamento descreve um ministério para bens vindouros (Hb 9,11), um sacerdócio que jamais passa (cf. Hb 6,20).
Até agora tem-se chamado Hebreus de carta, entretanto, a esta aplica-se a dinâmica de “três nãos”: não é carta, não é de Paulo e nem foi dirigida aos hebreus. O primeiro “não” reporta ser a carta muito mais uma homilia com transições suaves, alternando entre o tema proposto e algumas exortações. Quanto a autoria, há dúvida desde o tempo de Eusébio de Cesaréia (aproximadamente entre 260 d.C. até 340 d.C.). Muitos dizem que é um movimento moderno retirar de Paulo apóstolo a autoria deste livro, inclusive tal subtração ocorrera na liturgia por obra de exegetas que negam a tradição e se afogaram em afãs modernistas. Isto não procede. A dúvida sobre a autoria da carta aos Hebreus é antiquíssima e isto está explícito na História Eclesiástica do já citado Eusébio ao afirmar que quanto a autoria só Deus é que sabe quem escreveu. (Livro VI, capítulo 25, n° 11 e 14). O terceiro “não” é mais evidente: a homilia tinha por destinatário o povo judeu e os pagãos convertidos ao cristianismo; a esta altura da caminhada histórica não se fala mais de “povo hebreu”.
Deixando um pouco de lado estas questões de teologia bíblica, gostaria de elencar em poucos parágrafos, ao lado do tema do Sacerdócio único e eterno de Nosso Senhor, outros temas propostos pelo Escrito: a consubstancialidade do Filho em relação ao Pai; a identidade de Filho revelada, o plano escatológico de Deus para seus filhos – aqueles que foram a Cristo vinculados; as virtudes teologais; a Nova e Eterna aliança como marco de continuidade e ruptura da aliança antiga.
É muito importante ter diante dos olhos o trecho de Hb 1,3 que afirma o Pai e o Filho serem da mesma substância. Tal é a grandeza deste texto que nós o proclamamos no nosso Símbolo de fé solene – “Gerado não criado, consubstancial ao Pai”. Certamente não faltou aos padres conciliares Nicenos, nem a Santo Atanásio, esta profunda inspiração bíblica (ALTANER, B; STUIBER, A. 2004, p. 274).
Apesar de outrora ter sido afirmado não ser de Paulo, não quer dizer que não possua pontos de contato com o escrito do apóstolo. É bem verdade que um destes pontos está, justamente, no modo como a expressão “Filho” é trabalhada. Filho para hebreus é o mesmo que Filho para Paulo; é o Filho de Deus Pai, aquele que possui um nome que excede todo nome (Hb 1,5ss; Fl 2,9), um nome que nenhum anjo ou outro homem recebeu. É o herdeiro das coisas do Pai, o Senhor da casa, enquanto os demais são servos (Hb 3,1-6), é aquele diante quem os joelhos se dobram (Fl 2,10), mas, ao mesmo tempo, “embora sendo Filho, não se apegou ciosamente a ser igual em natureza a Deus Pai” (Fl 2,5ss), portanto, ele que nunca pecou (Hb 4,15) “Mesmo sendo filho aprendeu a obediência por aquilo que sofreu” (Hb 5,8).
Enquanto aplicação moral a Carta aos Hebreus é um verdadeira sinfonia, explorará o tema das virtudes teologais nos últimos capítulos (Hb 11-13). Sobre a fé concentra-se especialmente no capítulo 11 e trata de defini-la logo nos primeiros versículos. É em Hebreus 11 que com maior propriedade se entende o dia de Cristo visto por Abraão (Jo 8,56-58), pois, nos v. 17-19 vê se a ressurreição de Cristo à distância, fidúcia do retorno de Isaac, alegria de seu Pai. No campo da esperança se evoca a firmeza e a fortaleza de quem caminha com os olhos fixos em Jesus (cap. 12); e a caridade é apresentada como os caminhos seguros a serem trilhados pelos cristãos: uma estrada sem amargura, cheia de hospitalidade, amor fraterno, honra ao matrimônio e a castidade, sem esquecer o devido respeito aos pastores que lhes fora confiado. (caps 12 e 13).
A tábua moral encontrada na carta não poderia deixar de ter seu peso escatológico. Por diversas vezes o autor trabalha a misericórdia de Deus por nós, em Jesus Cristo, mas, igualmente, assenta o peso de sua justiça, pois, agora se o traímos, a Ele que nos resgatou à custa de seu próprio sangue, somos mais dignos de condenação do que aqueles que estavam sobre a administração da primeira lei, promulgada apenas por anjos. (Hb 2,1-4).
Enfim, o dado mais marcante desta “epístola – não epístola” é a exploração da solidariedade de Cristo por meio do seu sacerdócio. Depois de descrever os ritos antigos e o comportamento do Sumo-Sacerdote da Antiga Aliança na condição de separado, é possível ver o culto da Nova aliança sendo oficiado por Cristo com uma mudança radical no comportamento: Ele se tornou solidário a nós. Separado sim, mas do pecado. Encerra-se aqui com aquelas belas palavras do eminentíssimo Cardeal Albert Vanhoye: “A autêntica solidariedade com os pecadores não consiste tornar-se cúmplice de suas culpas, mas em levar com todos eles todo peso do castigo que dali se deriva. Jesus teve essa generosidade inaudita” (VANHOYE, A. 2006, p. 186).
Referências bibliográficas:
VANHOYE, A. Sacerdotes antigos e sacerdote novo; segundo o Novo Testamento. Tradução de Ronaldo Brito. São Paulo: Academia Cristã, 2006.
ALTANER, B; STUIBER, A. Patrologia. Vida, obras e doutrina dos padres da Igreja. Tradução Monjas Beneditinas. 3.ed. São Paulo: Paulus, 2004.
Algumas notas explicativas:
(1) O Neguev é uma área desértica na zona limítrofe e fronteiriça da terra de Canaã, ao extremo Sul, após a cidade de Bersheva; precisamente na Terra de Edom, mais tarde Iduméia, a caminho do Egito em direção à Península Sinaítica.
(2) O Cardeal Albert Vanhoye, SJ, nasceu em 24 de junho de 1923. Exímio Exegeta, ele foi reitor do Pontifício Instituto Bíblico de Roma e Secretário da Pontifícia Comissão Bíblica. Faleceu este ano, no dia 29 de julho aos 98 anos de idade.
(3) Eusébio de Cesaréia viveu aproximadamente entre 260 d.C. até 340 d.C.
(4) O artigo faz referência ao fato de Sto. Atanásio ter participado do I Concílio de Nicéia (325 d.C.). Sto. Atanásio era diácono e acompanhou seu Bispo, Alexandre de Alexandria, como secretário.
Sobre o autor:
Possui graduação em Teologia – Seminário Maior Arquidiocesano de Brasília Nossa Senhora de Fátima (2008 – curso livre) e graduação em Filosofia – Seminário Maior Arquidiocesano de Brasília Nossa Senhora de Fátima (2005 – curso livre). Atualmente é professor/formador – Seminário Maior Arquidiocesano de Brasília Nossa Senhora de Fátima e FATEO. Tem experiência na área de Teologia, com ênfase em Tradições e Escrituras Sagradas. Fez convalidação do curso livre de Filosofia na Faculdade de Ciências da Bahia – BA (2011); convalidação do curso livre de Teologia na Faculdade Católica de Anápolis – GO (2015); pós-graduação Lato Sensu (especialização) em Docência do Ensino Superior na Faculdade Mario Schenberg – SP (2012). Fez convalidação da graduação de Filosofia – Licenciatura – pela Faculdade Serra da Mesa – Fasem, Uruaçu – GO (2021). Atualmente está preparando-se para iniciar o curso de pós-graduação em Educação Clássica pela Fasem, Uruaçu-GO.
Pe. Rodrigo Vieira de Souza Noronha