A crise na Vida Consagrada

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Vive-se hoje no mundo uma decadência dos valores, da moral, da ética, da verdade e de tantos outros princípios que deveriam nortear a vida do ser humano. Outrora, percebia-se um definhar sutil do ser humano, hoje se toca escandalosamente este desedificar que tanto vem fazendo mal às pessoas e ao mundo. Realidade que não é só perceptível na vida quotidiana das pessoas em suas diversidades existenciais, mas também na vida religiosa, na vida consagrada como um todo.

O Cardeal Jean Daniélou já apontava sobre esta decadência, enfatizando a vida religiosa. “ Atualmente, penso que haja uma crise muito grave na vida religiosa e que não se deve falar de renovação, mas, de decadência[1].”

Percebemos isso na diminuição das vocações, não somente devido à escassez de filhos que as famílias possuem, ou da pouca entrada de rapazes e moças nos seminários, institutos religiosos, congregações ou novas comunidades, mas, sobretudo, o arrefecimento de vocações autênticas  que estão dispostas a dar a vida, a enfrentar as mais diversas situações e desafios existenciais numa realidade onde o ser consagrado experimenta um mundo incrédulo, apático, indiferente e insensível à fé e ao Transcendente.

Segundo o Cardeal Jean Daniélou, esta crise se manifesta em todos os âmbitos. “Os conselhos evangélicos não são mais considerados como consagração a Deus, mas vistos sob uma perspectiva sociológica e psicológica. Têm-se a preocupação de não se apresentar uma fachada burguesa, mas sob o plano individual a pobreza não é praticada. Se substitui a obediência religiosa pela dinâmica de grupo, como pretexto de reagir contra o formalismo[2]…” Não somente contra o formalismo, entendido aqui como disciplina, mas tudo que se exige uma regularidade, uma estrutura firme e consistente. A vida quotidiana de oração, silêncio e ascese é abandonada, gerando uma confusão na vida dos vocacionados que deixaram o mundo desorganizado, desestruturado e vazio para buscar algo diferente, todavia, acabam vivenciando o mesmo contexto existencial em que se encontravam, porém agora, disfarçado de Deus. “Cada regularidade da vida de oração é abandonada e as consequências deste estado de confusão são, antes de tudo, o desaparecimento das vocações, visto que os jovens pedem uma formação séria[3]Urge, nos hodiernos tempos, se educar os jovens para uma vida de solidão e oração, que permita a eles se reestabelecerem nas vicissitudes da vida para retomarem, dia após dia, o árduo combate que a vocação e a missão exigem. “Grandes momentos de uma vida são as horas de sua oração e adoração. Eles geram o ser, formam nossa verdadeira identidade, enraízam uma existência no mistério. Quando vivemos a Paixão, é necessário que nos retiremos ao jardim do Getsêmani na solidão da noite.”[4]

Outro fator que intensifica esta crise são os consagrados, padres, religiosos e religiosas que abandonam a vida consagrada e renegam o compromisso que os ligava ao povo de Deus. Se colocam para servirem por um tempo e depois dizem: “já dediquei o tempo que podia. Agora tenho que cuidar de mim”. O sentido da vida consagrada está além. A pessoa que se consagra deve saber que sua consagração porta uma alteridade Divina, esplêndida, magnífica: a alteridade da paixão, morte e ressurreição. A consagração é a inserção no Tu de Deus sem perder a identidade pessoal, mas a enriquecendo através da presença divina atuante no eu humano.  Isto nos leva à certeza de se servir para sempre. “Todos vós tendes vontade de dar a vida para sempre a Cristo! Agora vós aplaudis, fazeis festa, porque é tempo de núpcias… Mas quando acaba a lua de mel, o que acontece? Ouvi um seminarista, um bom seminarista, que dizia que queria seguir Cristo, mas por dez anos, e depois pensará em começar outra vida… Isto é perigoso! Ouçam bem: todos nós, também nós mais velhos, também nós, estamos sob a pressão desta cultura do provisório; e isto é perigoso, porque não se joga a vida de uma vez para sempre. Eu caso-me enquanto o amor dura; eu faço-me freira, mas por um ‘tempinho…’, ‘um pouco de tempo’, e depois verei; eu faço-me seminarista para ser padre, mas não sei como vai acabar a história. Não pode ser assim com Jesus!”[5]

Mas quais seriam as causas desta crise? Para o Cardeal Jean Daniélou é uma falsa interpretação do Concílio Vaticano II. Por que? Porque houve uma substituição das diretrizes do Vaticano II pelas ideologias errôneas colocadas em circulação pelas revistas, conferências e teólogos. Dentre estes erros, segundo o Cardeal Jean Daniélou, se destaca a secularização. “O Vaticano II declarou que os valores humanos devem ser levados a sério. Porém, jamais disse que nós entraríamos em um mundo secularizado no sentido que a dimensão religiosa não seria mais presente na civilização, e é em nome de uma falsa secularização que religiosos e religiosas renunciaram seus hábitos religiosos, abandonando suas obras, seus trabalhos na missão para inserirem-se nas instituições seculares, substituindo a adoração a Deus pelas atividades sociais e políticas.”[6]  Não podemos nos esquecer de que Deus “não nos pediu para que criássemos obras pessoais, mas que transmitíssemos a fé…que fôssemos mensageiros fiéis e intendentes dos mistérios cristãos”.

Para permanecer firme até o fim não se deve responder a Deus com uma resposta encontrada numa terapia, numa emoção passageira, numa falsa concepção de liberdade que traz consigo uma desvalorização as constituições, as regras, onde se exalta a espontaneidade e a improvisação[7], mas sim, numa reposta que se funda na amizade com Deus, que leve a um encontro de um porque para suportar qualquer como. 

Diante das assombrosas transformações em que se vive no mundo, pode-se se perguntar: como lidar com tantas mudanças, variações, e até mesmo, mutações na vida do ser humano? E quando toca a vida consagrada como um todo: como ser? Que caminho tomar? Diante desta dramática existência e questionamentos não se pode esquecer que “mesmo se os contextos mudam, os elementos constitutivos da Igreja e do homem são permanentes.”[8]

Não se pode esquecer que a vida dos padres, dos consagrados e dos religiosos é chamada a um grande futuro promissor na civilização técnica; mas esta se desenvolverá, quanto mais se fazer sentir a necessidade da manifestação de Deus. Este é, precisamente, o escopo da vida religiosa, mas, para compreender sua missão, ocorre que ela reencontre o seu autêntico significado e rompa radicalmente com uma secularização que a destrói na sua essência e a impede de atrair vocações. 

Assim, é essencial redescobrir quotidianamente o centro vitalizante da vida consagrada: Jesus Cristo, Aquele Único que dá Vida, o Caminho e a Verdade. É o Senhor que atrai! É preciso deixar-se envolver por Sua graça para viver com Ele, por Ele e Nele. A vida consagrada sonhada por Deus, não é proposta por ideologias que revelam mais o egoísmo humano que o verdadeiro amor de Deus; não é ter uma diluída vida fraterna chegando a ser só vida comum é, antes de tudo, o romper radical com uma secularização que a destrói em sua essência e impede o suscitar das vocações. Por fim, é um abrir-se ao “Espírito da Verdade, que conduzirá à plena verdade”[9] .

Pe. Rogério Alves Gomes[10]


[1] DANIÉLOU, Cardeal Jean. Entrevista à Rádio Vaticana em 23 de outubro de 1972

[2] DANIÉLOU, Cardeal Jean. Entrevista à Rádio Vaticana em 23 de outubro de 1972.

[3]_______________. Idem

[4] SARAH, Cardeal Robert. Deus ou nada. 1.ed. São Paulo: Fons Sapientiae, 2016. p. 88

[5] ENCONTRO COM OS SEMINARISTAS, OS NOVIÇOS E AS NOVIÇAS, Sala Paulo VI, Sábado, 6 de julho de 2013.

[6] ___________________. Entrevista à Rádio Vaticana em 23 de outubro de 1972.

[7] DANIÉLOU, Cardeal Jean. Entrevista à Rádio Vaticana em 23 de outubro de 1972.

[8] ______________________. Idem

[9] João 16,13

[10] Especialista em Docência do Ensino Superior, Professor no Seminário São José e na Faculdade Serra da Mesa em Uruaçu-GO, Professor convidado do Seminário Maior Dom Settimio Arturo Ferrazzetta, Guiné Bissau/África e Instituto Filippo Smaldone, Roma/Itália.