A Misericórdia que continua

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No dia 21 de novembro do ano passado, ao concluir o Ano Santo da Misericórdia, o Papa Francisco entregou à Igreja o documento “misericórdia e miséria” (misericordia et misera), no intuito de continuar o clima desencadeado por esse tempo abençoado que a Igreja viveu com as peregrinações e celebrações do jubileu extraordinário. E dando sinais de acolhida à Fraternidade Sacerdotal São Pio X concedeu a faculdade dada a toda a Igreja também aos sacerdotes dessa fraternidade.
O Papa, já ao proclamar, com entusiasmo, o Jubileu Extraordinário da Misericórdia, não quis resolver os problemas práticos que cercam a volta plena da FSSPX à Igreja, mas desejou demonstrar-lhes benevolente misericórdia e generosa acolhida ao conceder, na Carta sobre o Ano Jubilar, de 1º de setembro de 2015, como Supremo Pastor da Igreja, que os sacerdotes da Fraternidade absolvessem de modo válido e lícito os fiéis que a eles recorressem.
São palavras do Papa: “Uma última consideração é dirigida aos fiéis que por diversos motivos sentem o desejo de frequentar as igrejas oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade São Pio X. Este Ano Jubilar da Misericórdia não exclui ninguém. De diversas partes, alguns irmãos Bispos referiram-me acerca da sua boa fé e prática sacramental, porém unida à dificuldade de viver uma condição pastoralmente árdua. Confio que no futuro próximo se possam encontrar soluções para recuperar a plena comunhão com os sacerdotes e os superiores da Fraternidade. Entretanto, movido pela exigência de corresponder ao bem destes fiéis, estabeleço por minha própria vontade que quantos, durante o Ano Santo da Misericórdia, se aproximarem para celebrar o Sacramento da Reconciliação junto dos sacerdotes da Fraternidade São Pio X recebam validamente e licitamente a absolvição dos seus pecados”.
Agora, passado o Ano Jubilar Extraordinário da Misericórdia, como dissemos acima, o Papa voltou a dar sinais de acolhida para com a FSSPX ao escrever: “No Ano do Jubileu, aos fiéis que por variados motivos frequentam as igrejas oficiadas pelos sacerdotes da Fraternidade de São Pio X, tinha-lhes concedido receber válida e licitamente a absolvição sacramental dos seus pecados. Para o bem pastoral destes fiéis e confiando na boa vontade dos seus sacerdotes para que se possa recuperar, com a ajuda de Deus, a plena comunhão na Igreja Católica, estabeleço por minha própria decisão de estender esta faculdade para além do período jubilar, até novas disposições sobre o assunto, a fim de que a ninguém falte jamais o sinal sacramental da reconciliação através do perdão da Igreja”. (Misericordia et misera, n. 12).
Assim, o Papa Francisco, fiel à sua proposta de estender a todos os que desejam de braços e coração abertos acolher a misericórdia de Deus em suas vidas, não deixou de olhar com um carinho especial para a Fraternidade Sacerdotal São Pio X (FSSPX). Esse é um sinal que demonstra uma abertura importante, pois essa Fraternidade mantém reservas teológicas para com a Igreja de Roma no que toca, especialmente, a pontos de grande parte dos documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Ela, segundo informações, não seria “sedevacantistas”, pois em suas Missas, o nome do Papa Francisco e do Bispo local são mencionados na parte correspondente da Santa Missa.
A questão da Fraternidade se foca em pontos do Concílio Vaticano II e daí, apesar dos diálogos abertos com a Santa Sé, continuam afirmando que o Concílio Vaticano II foi de índole pastoral e, por isso, não tocou em verdades do Depositum Fidei da Igreja.
Por essa atitude, no mínimo estranha, brevemente descrita, a Santa Sé declarou a Fraternidade Sacerdotal S. Pio X cismática – afastada de Roma sem renegar verdades de fé, pois se negasse seria herética – em 1996, de acordo com o boletim SNOP, da Conferência dos Bispos Franceses, n. 1813, de 04/07/1997, p. 23. Essa classificação de cismática parece não ter sido ainda revertida, apesar dos diálogos entre a Santa Sé e a Fraternidade, uma vez que o Santo Padre espera “boa vontade dos sacerdotes da Fraternidade para que se possa recuperar, com a ajuda de Deus, a plena comunhão na Igreja Católica”. (Misericordia et misera, n. 12).
Aprofundando um pouco mais, devemos dizer que a tentativa de retorno dos membros da Fraternidade começou com o Papa Bento XVI. Rodrigo Coppe Caldeira, articulista do jornal O Lutador de 11-20/04/09, p. 03, deixou claro que a intenção já do Papa Bento XVI era fazer um trabalho conjunto entre a Pontifícia Comissão Ecclesia Dei e a Congregação para a Doutrina da Fé, a fim de juntas chegarem, no diálogo com a FSSPX, à plena comunhão desta com Roma. Sobre o que versaria, especificamente, esse diálogo? – A respeito da aceitação do Concílio Vaticano II e do magistério pós-conciliar dos papas.
A propósito disso, o próprio Bento XVI tinha alertado: “Não se pode congelar a autoridade magisterial da Igreja no ano de 1962: isto deve ser bem claro para a Fraternidade”. Isto é, defender que as decisões do magistério eclesiástico são legítimas somente até Pio XII, o último Papa antes do Concílio Vaticano II, não é correto e não pode ser aceito.
Cabe, por fim, uma palavra sobre a diferença entre um sacerdote ministrar o sacramento, do ponto de vista canônico, de modo válido e lícito: é válido quando os referidos sacerdotes foram ordenados por um Bispo que conserva a sucessão apostólica. Daí vem aos sacerdotes a capacidade de exercerem de modo válido o ministério. Contudo, é ilícito ou pecaminoso se – sem licença especial da autoridade eclesiástica competente – estão em comunhão imperfeita com a Igreja ou em cisma – continuam a exercer o ministério.
No caso dos padres da FSSPX, o Papa Francisco concede, uma vez mais, e agora por tempo indeterminado até segunda decisão, que eles deem de modo válido e lícito a absolvição sacramental aos fiéis que os procuram. O Papa, ao proclamar a continuação do clima da misericórdia, dá sinais claros da importância da aproximação e do diálogo na busca da cultura do encontro. É tempo de misericórdia!
Por Orani João, Cardeal Tempesta
Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro