“Antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo aconteça” (Mt 5, 18). A força da Palavra de Jesus concede o devido valor ao Antigo Testamento, proporcionando a todas as gerações a estrada que dá significado e plenitude aos preceitos da lei, da primeira à última letra, com seu valor de vida e santidade. Ele assegura que, atrás dos autores sagrados, existe uma providencial presença de Deus, que, com seu Espírito, que faz com que todas as etapas da história da Salvação iluminem os passos das gerações humanas. No entanto, Jesus é portador da novidade e ele mesmo é a novidade, pois nele se cumpre toda a lei. Só através dele se pode entrar no Reino de Deus, e nele até o menor dos mandamentos encontra seu sentido. Trata-se agora da exuberância de presença de Deus na história, no mistério da Encarnação. E em sua Morte e Ressurreição, Jesus realizou completamente o que consta na lei e nos profetas.
Assistimos diariamente ao espetáculo, com cenas nem sempre edificantes, de todos os embates políticos e judiciais em nosso país, com “operações” que se multiplicam, prisões, judicialização das relações humanas. A novidade do dia costuma trazer novas listas de figurões a serem presos, com espaço nos noticiários, julgamentos sumários nas redes sociais. No dia a dia de nossa convivência, qualquer pequena ofensa pode se transformar em assédio moral, os apelidos e brincadeiras de crianças passam a ser tratados como buylling, e daí por diante. E todo mundo se sente aparentemente seguro quando seus direitos são garantidos, as cercas e alarmes parecem garantir a privacidade, os condomínios oferecidos a todas as classes sociais se erguem para as pessoas se sentirem tranquilas. Tudo bem organizado, e as pessoas infelizes!
Eis que aparece o Evangelho, com propostas diferentes, novidade absoluta, a ser anunciada ao nosso tempo machucado e cansado. Há uma belíssima expressão, a “nova justiça” do Reino de Deus, cuja atualidade inverte todas as relações entre as pessoas e propugna um mundo novo, possível, sim, mas profundamente desafiador, cuja aceitação depende de uma decisão pessoal e adesão a outro “Reino”, que é de Deus e quer envolver a todos os homens e mulheres também de nossa geração. Jesus surge como aquele que cumpre toda a lei e os profetas, e esta já uma novidade radical, pois não anuncia um código de doutrinas, mas dá sentido verdadeiro a tudo o que veio antes. Aquele que é o bem-aventurado por excelência pode enviar os que a ele aderem com a força de uma palavra ousada: “Quem os praticar e ensinar será considerado grande no Reino dos Céus. Eu vos digo: Se vossa justiça não for maior que a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5, 19-20).
A nova justiça proposta por Jesus tem sua síntese no mandamento do amor. A inversão por ele proposta pede uma nova sensibilidade. Não basta ser educados no trato com as pessoas, ou respeitar limites na convivência. Nem é suficiente evitar os atentados contra a vida, como a violência que se expressa nas mortes cotidianas, mas, por amor, nem mesmo considerar imbecil ou louco qualquer irmão. Mesmo a raiva cultivada contra os outros há de ser superada! A justiça do Reino de Deus considera todos como irmãos! Deficientes, retardados, limitados, incapazes, e depois, os criminosos, os viciados, os traficantes, ou demais qualificações corretas ou politicamente incorretas que existirem, todas sejam superadas, para que a qualificação de irmão ou irmã a ser amado ilumine toda abordagem de quem quer que seja!
Consequência exigente é quase adivinhar, diante do altar, para buscar a reconciliação, tomando a iniciativa, sem esperar que alguém se humilhe para pedir perdão. A estrada a ser percorrida com as outras pessoas deverá ser uma verdadeira aventura de pacificação: “Procura reconciliar-te com teu adversário, enquanto ele caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. Em verdade, te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo” (Mt 5, 23-26).
Também o relacionamento afetivo adquire novo contorno e pede práticas diferentes, pedindo um olhar de pureza em relação às pessoas. Num tempo de exposição do corpo, práticas sexuais antes inimagináveis, libertinagem oferecida e propagandeada, Jesus propõe nadar contra a correnteza. Faz-se necessário tomar decisões com coragem, para começar a ser diferentes! Vale trazer plenamente à luz a palavra de Jesus: “Se teu olho direito te leva à queda, arranca-o e joga para longe de ti! De fato, é melhor perderes um de teus membros do que todo o corpo ser lançado ao inferno. Se a tua mão direita te leva à queda, corta-a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perderes um de teus membros do que todo o corpo ir para o inferno” (Mt 5, 29-30). Que ninguém se assuste! Dá mais trabalho amputar a maldade do coração do que um dos membros do corpo!
A recomendação que se segue pode deixar perplexa nossa geração, ainda que o Evangelho seja conhecido há tanto tempo: “Foi dito também: ‘Quem despedir sua mulher dê-lhe um atestado de divórcio’. Ora, eu vos digo: todo aquele que despedir sua mulher – fora o caso de união ilícita – faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher que foi despedida comete adultério” (Mt 5, 31-32).
Enfim, a palavra dada e o compromisso com a verdade: “Ouvistes também que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ‘cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. Ora, eu vos digo: não jureis de modo algum, nem pelo céu, porque é o trono de Deus; nem pela terra, porque é o apoio dos seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do Grande Rei. Também não jures pela tua cabeça, porque não podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo. Seja o vosso sim, sim, e o vosso não, não. O que passa disso vem do Maligno (Mt 5, 34-37).
Foi proposital a transcrição de trechos do Sermão da Montanha quanto ao respeito à vida e às pessoas, a pureza, a fidelidade à palavra dada. Para não escandalizar, vem o convite a olhar para Jesus, aquele que realiza plenamente o que anuncia. E ouso apresentar um questionamento! Estamos abertos à novidade da justiça evangélica? A exigência do “Eu, porém, vos digo”, pode tornar-se um imperativo em nossa vida? A escolha é nossa! Venha em nossa ajuda a coragem de São Paulo: “Mais que isso, julgo que tudo é prejuízo diante deste bem supremo que é o conhecimento do Cristo Jesus, meu Senhor. Por causa dele, perdi tudo e considero tudo como lixo, a fim de ganhar Cristo e ser encontrado unido a ele. E isto, não com a minha justiça que vem da Lei, mas com a justiça que vem pela fé em Cristo, a justiça que vem de Deus, com base na fé (Fl 3, 8-9).
Por Dom Alberto Taveira Corrêa – Arcebispo Metropolitano de Belém do Pará