Aprouve a Deus

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Acaba de ser publicada (01 de março) a Carta Placuit Deo, da Congregação para a Doutrina da Fé. A Igreja sempre atenta aos “sinais dos tempos” procura com o seu magistério esclarecer as questões surgidas nesta “mudança de época” e iluminar a vida do povo de Deus procurando sempre voltar às origens da revelação cristã. É um importante serviço que se presta à mensagem de Jesus que precisa sempre estar pura e clara para o nosso povo. A carta foi aprovada pelo Papa Francisco e trata de temas muito importantes para os atuais momentos da Igreja.

A expressão que dá nome ao novo documento significa “aprouve a Deus”. O título, nos documentos do Magistério da Igreja, é sempre tomado das primeiras palavras do próprio documento. Neste caso, elas são uma citação da Constituição Dogmática do Concílio Vaticano II sobre a Revelação Divina (Dei Verbum – A Palavra de Deus). Este é o ponto de partida da Carta “sobre alguns aspectos da salvação cristã” (título), na qual são recordadas verdades de fé que a Igreja proclamou desde o princípio, mas que as transformações culturais atuais (n. 1) tornam necessário retomar e refletir com profundidade.

Trata-se de desafios que hoje se encontram muito presentes e que têm semelhança com outros que no passado a Igreja teve de enfrentar. O Papa Francisco se referiu várias vezes a eles. A primeira vez foi aqui no Rio de Janeiro, no Centro de Estudos do Sumaré, quando se encontrou com os Bispos responsáveis pelo Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM), dia 28 de julho de 2013. Tratando das “tentações contra o discipulado missionário”, ele falou de várias formas de ideologização da mensagem evangélica, entre as quais estão “a proposta gnóstica” e “a proposta pelagiana”. Também na Exortação apostólica Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), número 94. Essas duas tendências se assemelham, em vários aspectos, a duas antigas heresias, e o Papa as descreve com seus antigos nomes: pelagianismo e gnosticismo.

O pelagianismo é uma tendência a supervalorizar a capacidade humana em vista da salvação. Como se, por nossas próprias capacidades, nos pudéssemos salvar. Essa tendência, atualmente se apresenta como um “individualismo centrado no sujeito autônomo”, que “tende a ver o homem como um ser cuja realização depende somente das suas forças” (n. 2).

O gnosticismo tende a desvalorizar o corpo e a valorizar unilateralmente o espírito e o intelecto. Sua versão atual consiste numa “visão de salvação meramente interior, que talvez suscita uma forte convicção pessoal ou um sentimento intenso de estar unido a Deus, mas sem assumir, curar e renovar as nossas relações com os outros e com o mundo criado” (n.2).

 “Seja o individualismo neo-pelagiano que o desprezo neo-gnóstico do corpo, descaracterizam a confissão de fé em Cristo, único Salvador universal” (n. 4). Posicionando-se diante dessas tendências, a Carta reafirma que nossa salvação consiste na união com Deus: “Diante destas tendências, esta Carta pretende reafirmar que, a salvação consiste na nossa união com Cristo, que, com a sua Encarnação, vida, morte e ressurreição, gerou uma nova ordem de relações com o Pai e entre os homens, e nos introduziu nesta ordem graças ao dom do seu Espírito” (idem).

Nos números 5 a 7, a Carta trata da correta compreensão da pessoa humana e da sede universal de felicidade e de salvação. Estas não se realizam plenamente naquilo que nós mesmos podemos fazer ou conquistar. Só Deus pode preencher plenamente o coração humano. “E a pessoa inteira, em corpo e alma, criada pelo amor de Deus à sua imagem e semelhança, que é chamada a viver em comunhão com Ele” (n. 7).

Cristo, Salvador e Salvação, é apresentado nos números 8 a 11. A reflexão sobre o modo como Deus nos salva em Cristo, deixa claro que “a salvação que Jesus trouxe na sua própria pessoa não se realiza somente de modo interior” e que “para poder comunicar a cada pessoa a comunhão salvífica com Deus, o Filho se fez carne” (cf. Jo 1,14) (n. 10). Tornou-se Ele mesmo o caminho, que não é apenas interior, sem relação com os outros e com o mundo. Ele assumiu integralmente a nossa humanidade, viveu plenamente a vida humana, em comunhão com o Pai e conosco. Diante disso, não se pode compreender corretamente a salvação de modo pelagiano, individualista; nem de modo gnóstico, meramente interior. “A salvação consiste em incorporar-se na vida de Cristo, recebendo o seu Espírito (cf. 1 Jo 4,13)” (n. 11).

“O lugar onde recebemos a salvação trazida por Jesus é a Igreja” (n. 12). Por isso, a Carta trata da dimensão eclesial da nossa salvação nos números 12 a 14). A dimensão eclesial-comunitária da salvação contradiz o individualismo. Contradiz também o espiritualismo gnóstico: as relações são concretas, a Igreja é uma fraternidade. A participação na Igreja se fundamenta nos sacramentos. Estes são matéria assumida por Deus e transformada em sinais eficazes da sua graça e da salvação. “O corpo humano foi modelado por Deus, que nele inscreveu uma linguagem que convida a pessoa humana a reconhecer os dons do Criador e a viver em comunhão com os irmãos. O Salvador restabeleceu e renovou, com a sua Encarnação e o seu mistério pascal, esta linguagem originária, e comunicou-a na economia corporal dos sacramentos”, afirma a Congregação, no número 14.

Ainda no âmbito eclesial e com relação aos sacramentos, nos é recordado que estar inseridos no Corpo de Cristo graças aos sacramentos, exige de nós “o cuidado pela humanidade sofredora de todos os homens, através das obras de misericórdia corporais e espirituais” (n. 14).

A experiência da salvação em Cristo impulsiona à missão, a proclamar a todos as pessoas humanas a alegria e a luz do Evangelho (n. 15), e a dialogar de modo sincero e construtivo com os crentes de outras religiões.

 Por fim, na Carta se recorda que “a salvação integral, da alma e do corpo, é o destino final ao qual Deus chama todos os homens”, pois “a salvação será plena” somente quando “participaremos plenamente da glória de Cristo ressuscitado, que leva à plenitude a nossa relação com Deus, com os irmãos e com toda a criação” (n. 15).

Fazemos nossa a invocação da Santa Virgem Maria, “a primeira dos que foram salvos”, pedindo-lhe que nos acompanhe na missão de evangelizar, anunciando a todos o amor salvador de Deus e superando toda e qualquer forma de reducionismo da fé e da vida cristã.

Por Cardeal Orani João Tempesta – Arcebispo do Rio de Janeiro