Assim na Terra como no Céu

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Quando rezamos o Pai-Nosso, a oração que Jesus ensinou, sabemos que se estabelece um laço profundo entre as realidades da Terra e do Céu. Ao pedir o perdão que vem de Deus, estabelecemos até um limite: “Assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido!” Ousamos pedir que chegue o Reino de Deus, que a sua vontade se faça e o seu nome seja santificado. De fato, a vida cristã caminha com a grande certeza de que estão definitivamente comprometidos o Céu que aguardamos e a Terra na qual vivemos, pois, “se é só para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, somos, dentre todos os homens, os mais dignos de compaixão” (1 Cor 15, 19). A Escritura nos ensina e nós professamos a certeza de que “o dia do Senhor chegará como um ladrão, e então os céus acabarão com um estrondo espantoso; os elementos, devorados pelas chamas, se dissolverão, e a terra será consumida com todas as obras que nela se encontrarem. Se é deste modo que tudo vai desintegrar-se, qual não deve ser o vosso empenho numa vida santa e piedosa, enquanto esperais com anseio a vinda do Dia de Deus, quando os céus em chama vão se derreter, e os elementos, consumidos pelo fogo, se fundirão? O que esperamos, de acordo com a sua promessa, são novos céus e uma nova terra, nos quais habitará a justiça” (2 Pd 3, 10-13).
O que rezamos e acreditamos há de se tornar prática em nossa vida, nas escolhas cotidianas que fazemos. É bom olhar para o Céu, comprometer-se com a eternidade e com seus valores, para então decidir o que fazer aqui na terra, para não correr o risco de nivelar por baixo o nosso comportamento. Assim, apontaremos para o alto e para frente a bússola de nossa existência. Sim, a medida estará no futuro que Deus nos promete e não num acomodamento a práticas passadas, tantas vezes viciadas pela maldade e pelo pecado.
Um dos campos mais desafiadores para o discernimento do cristão é justamente o uso dos bens da terra. Não é de hoje que o abismo existente entre poucos que possuem muito e muitas vezes escandalosamente e, no outro extremo, a grande massa de pobreza e miséria, é causa de indignação, quando não, de revolta. As lições oferecidas pelo Evangelho e pelas práticas de partilha, solidariedade e fraternidade se multiplicam e deverão ser acolhidas e assumidas, para que sejamos desde já sinais concretos da realização de um mundo mais justo e fraterno. A consciência dos cristãos precisa ser apurada e suscitar uma sadia pressa, dando, cada pessoa e cada comunidade, os passos necessários e urgentes.
A Parábola do rico epulão e de Lázaro, relatada pelo Evangelho de São Lucas (Lc 16, 19-31), pode iluminar as novas práticas esperadas dos cristãos, a fim de influenciarem positivamente a sociedade, preparando e fazendo acontecer novo Céu e nova Terra. Jesus conta uma história certamente comum e até corriqueira, na qual entram banquetes, festas, gastança, miseráveis assentados pelas ruas e portas. Basta percorrer nossas ruas e ver que até hoje nossas marquises das grandes cidades servem de frágil abrigo para os mendigos que se alimentam dos restos que caem das mesas da sociedade. Até os cães da Parábola continuam presentes!
O final da Parábola oferece a chave para a sua compreensão. O que suscita a mudança profunda nas pessoas é a Ressurreição de Cristo. A constatação de que “se não escutam a Moisés, nem aos Profetas, mesmo se alguém ressuscitar dos mortos, não acreditarão” (Lc 16, 31) pode ser entendida no sentido positivo. Para que os pobres tenham atenção, a partilha se instaure e o mundo seja diferente, só quando se parte da fé em Jesus Cristo e em sua Ressurreição. As muitas propostas de reforma da sociedade, no correr da história, tantas delas cheias de idealismo, vieram a fracassar por estarem eivadas de egoísmo, busca de interesses escusos, corporativismo, tudo fermentado pelas muitas ideologias de plantão. Só na conversão a Jesus Cristo, Caminho, Verdade e Vida, é que se encontra a saída para a solução dos graves problemas sociais.
A partir dele, a Parábola pode começar, fazendo que os proprietários de muitos bens olhem ao seu redor e percebam que existem pessoas sedentas e famintas, para nelas descobrirem a dignidade da pessoa humana e o fato de serem filhos e filhas de Deus. Com a luz da Ressurreição de Cristo, os muitos lázaros, mendigos e desprezados da terra experimentarão ser ajudados. Com a caridade e a partilha vivida, também os que antes se afastavam dos mais necessitados, encontrarão seu nome próprio, que lhes foi reservado desde a eternidade por Deus. Seus nomes estão escritos no livro da vida (Cf. Ap 20, 12). Então a morte será uma partida para a ceia da comunhão eterna, no “Seio de Abraão” (Lc 16, 22), expressão que aponta ao Paraíso.
Um belo desafio se encontra na certeza da eternidade. Todo homem e toda mulher precisam encontrar um horizonte digno da obra de arte que foi a sua criação, pois Deus nos pensou para sermos felizes. Desde esta Terra, os ricos e os lázaros, se acolherem o convite ao seguimento de Jesus, anteciparão a troca de bens esperada para o Céu e superarão juntos os males físicos, psicológicos, emocionais e espirituais, pois aprenderão a sair de si mesmos. O consolo será recíproco, no dom da própria vida!
“Deste modo, enquanto o Senhor não vier na Sua majestade e todos os seus anjos com ele (Cf. Mt 25,31) e, vencida a morte, tudo lhe for submetido (Cf.1 Cor 15, 26-27), dos seus discípulos uns peregrinam sobre a terra, outros, passada esta vida, são purificados, outros, finalmente, são glorificados e contemplam claramente Deus trino e uno, como ele é; todos, porém, comungamos, embora em modo e grau diversos, no mesmo amor de Deus e do próximo, e todos entoamos ao nosso Deus o mesmo hino de louvor. Com efeito, todos os que são de Cristo e têm o seu Espírito, estão unidos numa só Igreja e ligados uns aos outros nele (Cf. Ef 4,16). E assim, de modo nenhum se interrompe a união dos que ainda caminham sobre a terra com os irmãos que adormeceram na paz de Cristo, mas antes, segundo a constante fé da Igreja, é reforçada pela comunicação dos bens espirituais. Porque os bem-aventurados, estando mais intimamente unidos com Cristo, consolidam mais firmemente a Igreja na santidade, enobrecem o culto que ela presta a Deus na terra, e contribuem de muitas maneiras para a sua mais ampla edificação em Cristo (Cf.1 Cor 12, 12-27). Recebidos na pátria celeste e vivendo junto do Senhor (Cf. 2 Cor 5,8), não cessam de interceder, por ele, com ele e nele, a nosso favor diante do Pai, apresentando os méritos que na terra alcançaram, graças ao mediador único entre Deus e os homens, Jesus Cristo (Cf. 1 Tm 2,5), servindo ao Senhor em todas as coisas e completando o que falta aos sofrimentos de Cristo, em favor do seu corpo que é a Igreja (Cf. Cl 1, 24). A nossa fraqueza é assim grandemente ajudada pela sua solicitude de irmãos” (Lumen Gentium 49).
Por Dom Alberto Taveira Corrêa – Arcebispo de Belém do Pará