A Campanha da Fraternidade tem alguma relação com a Quaresma? Esta campanha poderia ser feita em época distinta deste tempo litúrgico? A Campanha da Fraternidade é a política comunista trazida para dentro da Igreja? “Devolva-me a Quaresma!” Estes são alguns questionamentos e expressão que se ouve de cá e de lá por este Brasil, principalmente nas últimas semanas. Anos atrás, estas perguntas também passavam por minha cabeça. As respostas não muito me convenciam. Foi necessário caminhar com a Igreja, escutar a Palavra de Deus, o Magistério, a vida do povo e considerar a “concretude”, como dizia Gabriel Marcel, para encontrar as respostas que agora passo a compartilhar com vocês.
“Convertei-vos e crede no Evangelho” (Mc 1,15) é a palavra divina que acompanha o tempo quaresmal. Ela é uma exortação e uma provocação à liberdade dirigida a todas as pessoas. Nós, cristãos católicos, a fazemos ressoar em primeiro lugar para nós mesmos. Desta maneira, recordamo-nos que só em Deus encontramos salvação e vida feliz sem fim. Tomamos consciência que pecar é romper a aliança com Deus e, consequentemente, com as pessoas e a criação (cf. Gn 3). Deus é vida. Por isso, pecar é morrer. Converter-se é voltar para Deus. Portanto, converter-se é viver. Viver de modo humano é viver em comunhão ou em fraternidade.
Referindo-se à Quaresma como tempo litúrgico, as Normas Universais sobre o Ano Litúrgico e o Calendário nos dá a seguinte indicação: “o tempo da Quaresma visa preparar a celebração da Páscoa; a liturgia quaresmal, com efeito dispõe para a celebração do mistério pascal tanto os catecúmenos, pelos diversos graus de iniciação cristã, como os fieis, pela comemoração do batismo e penitência” (n.27).
Falemos, então, da páscoa. Como palavra, “páscoa”, no seu sentido figurado, indica “saltar”, “passar”, perdoar; é passagem de uma situação para outra, da morte para a vida. A páscoa de Jesus, centro da fé cristã e do ano litúrgico, é a sua passagem da morte para a ressurreição. Pelo batismo nós participamos desta páscoa, ou seja, morremos para o pecado e renascemos para a vida em Cristo. A vida cristã é toda pascal. Nossos dias na terra são pascais: vivemos o contínuo esforço pessoal de renunciar o pecado e abraçar a graça santificante de Deus, morrer para o pecado e nascer para a Deus.
A Campanha da Fraternidade é exatamente isto. Os seus temas indicam sempre uma realidade brasileira de morte e apontam o caminho da vida, mostram o pecado e apontam o remédio. Um dos temas quaresmais é o pecado. Mesmo o pecado sendo algo espiritual, ele não deixa de se mostrar na concretude da vida gerando, por vezes, estruturas sociais de pecado. Em outras palavras, o pecado tem nome, rosto e endereço: violência, destruição da natureza, injustiça, egoísmo, indiferença para com as pessoas, destruição da vida humana, racismo. Estes são alguns pecados denunciados pelas recentes Campanhas da Fraternidade. Para estas situações, a Igreja, iluminada pelo Evangelho e o Magistério, propôs o caminho da conversão: “vós sois todos irmãos” (Mt 23,8), “cultivar e guardar a criação” (Gn 2,15), “quero ver o direito brotar como fonte e correr a justiça qual riacho que não seca” (Am 5,25), “Eu vim para servir” (Mc 10,45), “vocês não podem servir a Deus e ao dinheiro (Mt 6,24), “escolhe, pois, a vida” (Dt 30,19). Que nome podemos dar a este processo? Isto se chama Páscoa.
A Campanha da Fraternidade se configura, assim, como oportunidade de conversão pessoal, comunitária e social. Ela “nos pede atenção e conversão. Desperta para uma cultura de fraternidade, apontando os princípios da justiça, denunciando ameaças e violações da dignidade e dos direitos, abrindo caminhos de solidariedade. A vida fraterna é a síntese do Evangelho: ‘Como meu Pai me ama, assim também eu vos amo. Permanecei no meu amor’ (Jo 15,9). Ela testemunha a nossa dignidade como verdadeiros filhos e filhas de Deus” (CNBB, Texto base da Campanha da Fraternidade 2018, n. 14).
Esta inspiração é presente desde a primeira Campanha ocorrida na Quaresma de 1962, em Natal (RN), em âmbito regional, coordenada por Dom Eugênio Sales. Os papas sempre souberam da Campanha da Fraternidade e a apoiaram. Lembro-me da expectativa para ver o papa são João Paulo II na televisão, falando português, com sua mensagem motivadora para a Campanha. Hoje recebemos a mensagem por escrita.
Sei que para alguns católicos brasileiros lhes causa estranheza alguns temas da Campanha da Fraternidade. Problemas sociais não combinam com o cristianismo, tão pouco com reza, podem pensar alguns ao dissociar fé e vida. Este fenômeno eu o interpreto como sinal de que necessitamos caminhar mais um pouco para que a Doutrina Social da Igreja seja mais eficaz e faça parte do discurso e da vivência cristã dos nossos católicos. Bento XVI, ao se dirigir aos bispos da América Latina e do Caribe reunidos para a Conferência de Aparecida, em seu discurso de abertura disse que “neste esforço por conhecer a mensagem de Cristo e torná-la guia da própria vida [meta quaresmal], é preciso recordar que a evangelização esteve sempre unida à promoção humana e à autêntica libertação cristã. ‘Amor a Deus e amor ao próximo se fundem entre si: no mais humilde encontramos o próprio Jesus e em Jesus encontramos Deus’ (Deus caritas est, 15). Por isso, será também necessária uma catequese social e uma adequada formação na doutrina social da Igreja, sendo muito útil para isso o ‘Compêndio da Doutrina Social da Igreja’. A vida cristã não se expressa somente nas virtudes pessoais, mas também nas virtudes sociais e políticas” (Discurso 13 de maio de 2007).
Deste modo, fazendo este caminho, entendi que a Campanha da Fraternidade tem tudo a ver com a Quaresma e mais ainda com a Páscoa. É um itinerário concreto de conversão pessoal em todas as dimensões humanas. Sem dúvida, poderia ser feita em outro período do ano litúrgico, afinal a conversão é um processo diário. Aliás, em algumas localidades a Campanha se estende ao longo do ano. Contudo, é na Quaresma que ressoa com maior força o apelo à conversão.
Por fim, compreendi também que se alguém politiza ideologicamente a Campanha da Fraternidade comete um grande equívoco e deve ser corrigido pela autoridade eclesiástica competente. Ao criticar a Campanha é prudente estar atento para não dar banho na criança e jogar fora a água suja junto com a criança.
Pe. Francisco Agamenilton Damascena
Coordenador diocesano de pastoral
Diocese de Uruaçu – GO