Tornou-se cotidiano o tema da crise. Fala-se de crise política, econômica, social, ética, antropológica, de segurança, de saúde pública, de educação. A crise instalou-se na sociedade!
Em nome da crise se atropela instâncias da sociedade, tempos e ritos, fazendo avançar iniciativas bizarras que vulgarizam valores e tradições. É o que se constata quando qualquer período do ano se torna oportunidade para carnaval.
O carnaval fazia parte da tradição cultural de vários povos antigos. Tratava-se de uma animada festa popular, com forte apelo à liberdade de expressão e movimento.
O carnaval também faz parte da cultura brasileira. Ora, cultura é tudo o que um grupo humano desenvolve para viver, conviver, sobreviver, relacionar-se, interpretar e dar sentido à vida. Cultura é conhecer e respeitar os valores das pessoas como expressão de sabedoria. Cultura é descoberta, conhecimento, benefício, partilha de experiências. Cultura é respeito pelas diferenças!
Nesse contexto, vale recordar o que dizia o cacique Raoni, da etnia Kayapó: “Eu não quero a sua cultura. Alguns entre vocês têm dinheiro e matam os outros para ter um pouco. Outros bebem álcool e bêbados destroem a si mesmos e os outros. Eu tenho medo mesmo! Nós, os Kayapós, pelo menos temos consideração e compreensão para com os outros. Somos todos irmãos e tios uns dos outros. É por isso que temos respeito, que protegemos uns aos outros. Vocês, brancos, não se preocupam com os de menos sorte. Vocês mentem uns para os outros. Eu descobri!”.
O carnaval traz em si um forte apelo de integração social. O genuíno carnaval é marcado pela música, dança, canto, pela alegria descontraída. Quanta beleza nos grupos que percorrem ruas e praças com alegria, candura e inocência… Gente imaginando que podia ser rei, rainha, princesa ao menos um dia na vida! O que dizer das fantasias, expressão de pausa no cotidiano marcado por tensões de toda espécie! E as músicas cheias de graça e movimentos; o cotidiano sendo transformado em samba: a mulher com a lata d’água na cabeça, a chiquita bacana lá da Martinica, os mil palhaços no salão, a colombina e o pierrô que se amam. Quanta alegria simples e pura!
O que fizeram do carnaval? O carnaval enquanto expressão cultural do povo brasileiro está em crise! Às outras crises que marcam o presente, soma-se também a crise do carnaval.
A crise provoca alterações, convidando à purificação. Assumir a crise significa dispor-se à revisão de comportamentos, posturas, compreensões. Acolher a crise é saber cuidar. Viver a crise é dispor-se para ir ao encalço do novo que se apresenta, desafiando o ser humano à superação de referências cristalizadas.
O povo brasileiro está sendo desafiado no viver e conviver; está sendo desafiado a sobreviver! A crise vivida, nas suas múltiplas facetas, é fruto de equívocos teimosos e persistentes na sociedade. É expressão da falência de um modelo social que escolheu organizar-se a partir de uma lógica perversa que não respeita ninguém, nem tempos e cultura.
A vida atual em sociedade tem sofrido modificações bruscas, fruto do secularismo, subjetivismo, hedonismo, individualismo. Neste contexto, os discípulos de Jesus Cristo tem uma particular missão, sintetizada de forma exemplar pelo Padre Antônio Vieira: “Veja o céu que ainda tem na terra quem se põe da sua parte. Saiba o inferno que ainda há na terra quem lhe faça guerra com a palavra de Deus; e saiba a mesma terra, que ainda está em estado de reverdecer e dar muito fruto”.
Por Dom Jaime Spengler – Arcebispo metropolitano de Porto Alegre