Felicidade e Sentido

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Ao observarmos o ser humano e sua ação no mundo, podemos facilmente notar que em tudo que faz é direcionado para uma realização pessoal, mesmo as coisas mais árduas e difíceis são feitas com o intuito de receber uma recompensa que o faça realizar-se. Essa realização pode ser chamada de felicidade, ou seja, em tudo que o homem faz ele busca a felicidade a realização.

Porém, cabe a todos aqueles que a buscam uma reflexão séria e sistemática sobre o que ela é de fato, pois, quando falamos em felicidade e realização estamos nos remetendo ao que nos leva ou nos dá uma verdadeira felicidade, ou seja, um sentido maior que seja base para a busca da felicidade, que independe do estado de ânimo que o sujeito se encontre, esse sentido é o sentido da vida, que irá assegurar que a felicidade buscada não é uma mera ilusão ou uma felicidade simplesmente animalesca.

Desde a era clássica da filosofia os filósofos já se empenhavam para conceber uma definição do que é felicidade, por exemplo, vemos Tales de Mileto que é considerado o “primeiro” filósofo, considerar feliz “quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada”.

O filósofo Demócrito concebe a “felicidade como a medida do prazer e a proporção da vida, que era manter-se afastado dos defeitos e dos excessos”.[1](apud., Abbagnano, 2007)

Aristipo foi o filósofo que fez a distinção entre felicidade e prazer. Para ele somente o “prazer é bem, pois ele é desejado por si mesmo, ele é fim em si mesmo. Ele afirma que o fim é o prazer particular, e a felicidade é o sistema dos prazeres particulares”.[2]

Contrapondo Aristipo, Egesias negava a possibilidade da felicidade, “pois os prazeres são demasiados raros e passageiros, então se a base para a felicidade é o prazer não há possibilidade de felicidade”.[3]

O grande filósofo do mundo das ideias Platão, nega que a felicidade consiste no prazer, ele afirma que a felicidade está ligada a virtude: “Os felizes são felizes por possuírem a justiça e a temperança: os infelizes são infelizes por possuírem a maldade”. [4]A virtude em Platão é a capacidade da alma de cumprir seu próprio dever, ou seja, de dirigir o homem da melhor maneira, sendo assim a noção platônica de felicidade é relativa à situação do homem no mundo e aos deveres que lhe cabem.[5]

O insigne filósofo da metafísica, o “real” Aristóteles, concebe a felicidade como “certa atividade da alma, realizada em conformidade com a virtude”.

As pessoas felizes, segundo Aristóteles, devem possuir as três espécies de bens que se podem distinguir, quais sejam os exteriores, os do corpo e os da alma. É verdade que “os bens exteriores, assim como qualquer instrumento, têm um limite dentro do qual desempenham sua função utilitária de instrumentos, mas além do qual se tornam prejudiciais ou inúteis para quem os possui. Os bens espirituais, ao contrário, quanto mais abundantes, mais úteis”. Mas em geral pode-se dizer que “cada qual merece a felicidade na medida da virtude, do tino e da capacidade de bem agir que possui, podendo se tomar como exemplo a divindade, que é feliz e bem-aventurada não graças aos bens exteriores, mas por si mesma, por aquilo que ela é por natureza”. A Felicidade é, portanto mais acessível ao sábio que mais facilmente se basta a si mesmo, mas é a isso que devem tender todos os homens e as cidades. (ABBAGNANO, 2007, p. 434) [6]

Nota-se a briga intelectual entre os filósofos para definir a felicidade, porém, as noções apresentadas por Platão e Aristóteles estão mais próximas de uma felicidade que visam o homem como todo, e não simplesmente como algo condicionado.

Na era medieval Santo Agostinho falou da “felicidade como fim da sabedoria; a felicidade é a possessão do verdadeiro absoluto, quer dizer, de Deus, todas as demais felicidades se encontram subordinadas àquela”.[7]

Na escolástica Santo Tomás de Aquino vê a felicidade como beatitude:

Usou o termo beatitude como equivalente a felicidade e definiu como “um bem perfeito de natureza intelectual”. A felicidade não é simplesmente um estado de alma, mas, algo que a alma recebe a partir de fora, pois de contrário a felicidade não estaria ligada a um bem verdadeiro. (ABBAGNANO, 2007, p. 434)[8]

O termo beatitude usado por Tomás, foi utilizado primeiro por Aristóteles, que diz que a beatitude é um caráter contemplativo da felicidade. Tomás usa esse termo e desenvolve seu pensamento no seu livro “Suma Teológica”, pois toda a sua filosofia é baseada no pensamento de Aristóteles.

No período moderno o empirista Locke afirma que a felicidade é o maior prazer de que somos capazes, e a infelicidade o maior sofrimento.

O grau ínfimo daquilo que pode ser chamado de felicidade é estar tão livre de sofrimentos e ter tanto prazer presente que não é possível contentar-se com menos.”Creio que a felicidade é um prazer durável, o que não poderia acontecer sem o progresso contínuo em direção a novos prazeres”. (ABBAGNANO, 2007, p. 435)[9]

Nota-se em Locke a afirmação do prazer como felicidade, que os filósofos da era clássica já haviam definido. A definição de Locke torna a felicidade nada mais como uma forma animalesca de ser feliz, e não humana, os animais apesar de não serem capazes de raciocínio e cognição são assim. Nestes há “felicidade” quando satisfazem suas necessidades fisiológicas, porque neles a dimensão que os comanda é a biológica, já no homem, notamos que é diferente, a dimensão biológica é uma parte do todo, que é o homem e não a principal e a que comandam as outras, não se pode negar que ela exerce uma grande influência nas outras dimensões, os animais não conseguem controlar seus instintos e forças biológicas, o homem não consegue dominá-las totalmente, mas consegue educá-las.

A concepção de Locke, hoje é muito visível na sociedade, pois, se busca ser feliz a todo custo, mas não uma felicidade virtuosa, e sim uma felicidade puramente prazerosa e animalesca, que reduz o homem a simples e meros instintos, que ao invés de levá-lo a realizar o seu fim o tira totalmente de seu caminho.

O homem contemporâneo está totalmente desorientado e perdido em meio a tantos fenômenos ocorridos nas últimas décadas, ele perdeu o rumo de seu caminho, já não se sabe ou não tem mais uma direção, um caminho, uma meta final, ou seja, não sabe aonde quer chegar. O grande mal em não saber aonde se quer chegar, é que qualquer caminho seja ele virtuoso ou não se torna um caminho possível, não sabendo onde quer ir provavelmente sofrerá de crise existencial, pois, o caminho que escolhemos está ligado o que já somos, ou, o que desejamos nos tornar, sendo assim há um mínimo interesse de saber quem é, e por isso se perde e se afunda cada dia no nada existencial. Para quem não tem uma meta, qualquer lugar em que se chegue é o suficiente, e isso é uma redução negativa da vida, do viver, pois não há perspectiva não há uma meta a se alcançar. Olhando a sociedade e principalmente os jovens, afirmo, baseado em muitas situações observadas e vividas, que a sociedade e os jovens não tem um sentido para a vida, não sabem o porquê e nem o para que estejam vivendo, ou seja, estão no nada, permanecem no nada, e continuarão no nada, mas isso não é algo determinado, o homem é capaz de ir além de si e de suas circunstâncias.

Não se pode negar que há uma relação bem íntima entre prazer e felicidade, porém, não se pode reduzir a felicidade a simples prazer, pois como foi dito anteriormente, estaríamos reduzindo o homem a simplesmente uma dimensão que é a biológica.

Como podemos chegar a tão esperada e querida felicidade, sem reduzir o homem?

Viktor Frankl afirma que felicidade não é algo que deve ser buscado ou perseguido, pois ela é uma consequência da realização do sentido da vida. Para Frankl, não se visa à felicidade, pois ela, por si mesma, não acontece. Ele acredita que o caminho concreto para a realização do ser humano e consequente felicidade está na autotranscendência. O que deve ser visado é uma tarefa, uma causa ou uma pessoa, e que quanto mais alguém se esquece de querer ser feliz dedicando-se a uma causa ou a outras pessoas, mais essa pessoa poderá ser feliz. (MELO, 2014)[10]

Viktor Frankl foi um médico e psiquiatra judeu que passou pela experiência do campo de concentração nazista, no campo de concentração viveu verdadeiros momentos de pesadelos e horrores, só resistiu ao campo porque tinha um sentido maior pelo qual viver, ou seja, tinha um sentido na vida. Frankl conta em um de seus livros que o sentido da vida dele é ajudar as pessoas a encontrarem um sentido.

Como foi citada logo acima, a felicidade não é algo que se alcança, e nem algo que vem por acaso, mas é a consequência de uma doação, para algo ou alguém.

Frankl afirma que o homem é capaz de autotranscendência:

A autotranscendência assinala o fato antropológico fundamental de que a existência do homem sempre se refere a alguma coisa que não ela mesma – a algo ou a alguém, isto é, a um objetivo a ser alcançado ou à existência de outra pessoa que ele encontre. Na verdade, o homem só se torna homem e só é completamente ele mesmo quando fica absorvido pela dedicação a uma tarefa, quando se esquece de si mesmo no serviço a uma causa, ou no amor a uma outra pessoa. É como o olho, que só pode cumprir sua função de ver o mundo enquanto não vê a si próprio (FRANKL, 1991, p. 18).[11]

Ele concebe uma visão de homem contemplando todas as suas dimensões; bio – psíquica – espiritual, concepção que nem todos os filósofos e psicólogos possuem.

Conforme as citações anteriores pode-se notar que existe para a felicidade um caminho, e que ela não é uma meta e sim uma consequência. O que acontece com os jovens hodiernos é que não querem percorrer um caminho de autotranscendência rumo a felicidade, mas já passam do querer ser feliz para a felicidade, o grande problema está aí, pois a felicidade em si não é meta, não sendo meta não é algo capaz de total satisfação, sendo assim, quando acontece essa passagem direta para a felicidade, o que ele encontra não é a felicidade, encontra a frustração, a dor e o nada, e esse talvez seria o motivo de tanta gente sem motivo para viver, pois busca freneticamente a felicidade como um fim, como uma busca incessante por prazer, como se a felicidade se resumisse em prazer, em relação a isso Frankl afirma:

Em geral, o que o homem quer não é o prazer; quer o que quer, sem mais. Os objetos do querer humano são entre si diversos, ao passo que o prazer sempre será o mesmo, tanto no caso de um comportamento valoroso como no caso de um comportamento contrário aos valores. Daí que o reconhecimento do princípio do prazer conduza inevitavelmente ao nivelamento de todas as possíveis finalidades humanas. Com efeito, sob esse aspecto, seria completamente indiferente que o homem fizesse uma coisa ou outra. Se realmente víssemos no prazer todo o sentido da vida, em última análise, a vida pareceria sem sentido. Se o prazer fosse o sentido da vida, a vida propriamente não teria sentido algum (FRANKL, 2003, p. 68).[12]

Analisando o que Frankl disse, podemos facilmente notar o motivo de tantas pessoas se matando, vivendo uma vida sem sentido, ou seja, uma vida infernal, pois buscam no prazer todo o motivo de sua felicidade, e de sua autorrealização.

A autorrealização não constitui a busca última do ser humano. Não é sequer sua intenção primária. A autorrealização, se, transformada num fim em si mesmo, contradiz o caráter autotranscendente da existência humana. Assim como a felicidade, a autorrealização aparece como efeito, isto é, o efeito da realização de um sentido. Apenas na medida em que o homem preenche um sentido lá fora, no mundo, é que ele realizará a si mesmo. Se ele decide realizar a si mesmo, ao invés de preencher um sentido, a autorrealização perde imediatamente sua razão de ser (FRANKL, 1988, p. 38).[13]

Viktor Frankl ainda afirma:

Não é verdade que o homem, propriamente e originalmente, aspira a ser feliz? Não foi o próprio Kant quem reconheceu tal fato, apenas acrescentando que o homem deve desejar ser digno da felicidade? Diria eu que o homem realmente quer, em derradeira instância, não é a felicidade em si mesma, mas, antes, um motivo para ser feliz (FRANKL, 1990, p. 11).[14]

Com essa última citação de Frankl pode-se concluir que de fato o que o homem busca é um motivo para ser feliz, não um motivo banal, mas um motivo que o leve a autotranscendência, que o leve a realizar algo, alguma tarefa, algo pelo qual valha a pena todo esforço e luta, o homem não se satisfará com o prazer, não será feliz puramente com sensações físicas, mas, o que de fato levará à pessoa a verdadeira felicidade é um motivo pelo qual ela seja capaz de se sacrificar por ele, ou seja, um sentido para viver.

 

REFERÊNCIAS

 

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia (2007). São Paulo, SP: Martins Fontes.

FRANKL, V. E. (1990). Psicoterapia para todos (A. Allgayer, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes.

Frankl, V. E.  The will to meaning. Nova Iorque: Meridian Books. 1988.

FRANKL, V. E.. A psicoterapia na prática (C. M. Caon, trad.). Campinas, SP: Papirus. 1991.

FRANKL, V. E. (2003). Psicoterapia e sentido da vida (A. M. Castro, trad.). São Paulo: Quadrante.

MELO, Manuela. Como encontrar a felicidade? Disponível em: <http://formacao.cancaonova.com/diversos/como-encontrar-a-felicidade>. Acessado em: 10/11/2014, às 15:00h.

MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia (1978). Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote.

[1] DEMÓCRITO apud. AbbagnanO, Nicola. Dicionário de Filosofia. São Paulo, SP: Martins Fontes. 2007. p. 434.

[2]idem.

[3]idem.

[4]idem.

[5]idem.

[6] idem.

[7] MORA, José Ferrater. Dicionário de Filosofia José Ferrater Mora. Lisboa, Portugal: Publicações Dom Quixote. 1978.

[8]  ABBAGNANO, op.cit., p. 434.

[9] ibid. p. 435.

[10] MELO, Manuela. Como encontrar a felicidade? Canção Nova. Disponível em: <http://formacao.cancaonova.com/diversos/como-encontrar-a-felicidade>. Acessado em: 10/11/2014, às 15:00h.

[11] FRANKL, V. E.. A psicoterapia na prática (C. M. Caon, trad.). Campinas, SP: Papirus. 1991.

[12] FRANKL, V. E. Psicoterapia e sentido da vida (A. M. Castro, trad.). São Paulo: Quadrante. 2003.

[13] Frankl, V. E.  The will to meaning. Nova Iorque: Meridian Books. 1988.

[14] FRANKL, V. E. Psicoterapia para todos (A. Allgayer, trad.). Petrópolis, RJ: Vozes. 1990.

 

Texto de Pe. Eguimar Matias dos Santos, vigário paroquial da Paróquia Santo Antônio de Pádua, na cidade de Mara Rosa-GO, incardinado na Diocese de Uruaçu-GO.