Seguimos, neste mês de setembro, com o aprofundamento sobre o tema do mês da Bíblia. A Palavra divina ilumina a existência humana e leva as consciências de reverem em profundidade a própria vida, porque toda a história da humanidade está sob o olhar de Deus: “Quando o Filho do Homem vier na sua glória, acompanhado por todos os seus anjos, sentar-Se-á, então, no seu trono de glória. Perante Ele reunir-se-ão todas as nações” (Mt 25, 31-32). Em nossos dias, nos detemos muitas vezes superficialmente no valor do instante que passa, como se fosse irrelevante para o futuro. Diversamente, o Evangelho recorda-nos que cada momento da nossa existência é importante e deve ser vivido intensamente, sabendo que cada um deverá prestar contas da própria vida. No capítulo vinte e cinco do Evangelho de Mateus, o Filho do Homem considera como feito ou não feito a Si aquilo que tivermos feito ou deixado de fazer a um só dos seus “irmãos mais pequeninos” (25, 40.45): “Tive fome e me destes de comer, tive sede e me destes de beber; era peregrino e me acolhestes; estava nu e me vestistes; adoeci e me fostes visitar; estive na prisão e fostes ter comigo” (25, 35-36). Deste modo, é a própria Palavra de Deus que nos recorda a necessidade do nosso compromisso no mundo e a nossa responsabilidade diante de Cristo, Senhor da História. Quando anunciamos o Evangelho que é luz para iluminar os caminhos, exortamo-nos reciprocamente a cumprir o bem e a empenhar-nos pela justiça, pela reconciliação e pela paz (Cf. Bento XVI, Verbum Domini, 99).
Dentro ainda dessa necessidade de revalorizar a presença da Palavra de Deus na vida e na ação da Igreja e já nos preparando para o início do mês missionário extraordinário o Papa Francisco comenta que toda a evangelização está fundada sobre esta Palavra escutada, meditada, vivida, celebrada e testemunhada. A Sagrada Escritura é fonte da evangelização. Por isso, é preciso formar-se continuamente na escuta da Palavra. A Igreja não evangeliza, se não se deixa continuamente evangelizar. É indispensável que a Palavra de Deus «se torne cada vez mais o coração de toda a vida da Igreja. A Palavra de Deus ouvida e celebrada, sobretudo na Eucaristia, alimenta e fortalece interiormente os cristãos e torna-os capazes de um autêntico testemunho evangélico na vida diária. O estudo e a intimidade com a Sagrada Escritura deve ser uma porta aberta para todos os crentes. A vida cristã requer a familiaridade com a Palavra de Deus. Nós não procuramos Deus tateando, nem precisamos de esperar que Ele nos dirija a palavra, porque realmente Deus já nos falou, já não é o grande desconhecido, mas mostrou-Se a Si mesmo. Acolhamos o tesouro sublime da Palavra revelada! (Cf. Papa Francisco, Evangelii Gaudium 174).
Cada domingo temos um grande riqueza da Palavra que é anunciada e deve iluminar nossas vidas. Neste 25º domingo do Tempo Comum, a palavra segue nos acompanhando. Neste ano em que lemos o Evangelho de Lucas deixemo-nos guiar pelo seu testemunho da boa notícia. O Evangelho deste domingo (Lc 16, 1-13), nos traz a parábola do administrador infiel, mostrando o quanto as pessoas são espertas quando se trata de defender seus interesses financeiros ou suas metas:
Naquele tempo: Jesus dizia aos discípulos: ‘Um homem rico tinha um administrador que foi acusado de esbanjar os seus bens. Ele o chamou e lhe disse: ‘Que é isto que ouço a teu respeito? Presta contas da tua administração, pois já não podes mais administrar meus bens’. O administrador então começou a refletir: ‘O senhor vai me tirar a administração. Que vou fazer? Para cavar, não tenho forças; de mendigar, tenho vergonha. Ah! Já sei o que fazer, para que alguém me receba em sua casa quando eu for afastado da administração’. Então ele chamou cada um dos que estavam devendo ao seu patrão. E perguntou ao primeiro: ‘Quanto deves ao meu patrão?’ Ele respondeu: ‘Cem barris de óleo!’ O administrador disse: ‘Pega a tua conta, senta-te, depressa, e escreve cinquenta!’ Depois ele perguntou a outro: ‘E tu, quanto deves?’ Ele respondeu: ‘Cem medidas de trigo’. O administrador disse: ‘Pega tua conta e escreve oitenta’. E o senhor elogiou o administrador desonesto, porque ele agiu com esperteza. Com efeito, os filhos deste mundo são mais espertos em seus negócios do que os filhos da luz.
Segundo o costume da época, o administrador tinha o direito de conceder empréstimo com os bens do seu senhor. Como ele não era remunerado por isso, ele se indenizava aumentando no recibo o valor do empréstimo. Assim, na hora do reembolso ficava com a diferença como um acréscimo que era o seu juro. Aqui na parábola, o administrador renuncia obter lucro dos juros para que assim possa obter benefícios futuros, passando a imagem de ter dado favorecimento aos seus clientes.
O administrador infiel usa de inteligência para resolver sua futura situação de necessidade, e faz isso renunciando aos seus lucros indevidos. É evidente que Cristo não usa esta parábola como motivo de aprovar essa conduta, mas ressalta e louva a dedicação do personagem da parábola em tirar proveito material de sua antiga situação de administrador. Jesus quer que na salvação da alma e na propagação do Reino de Deus apliquemos pelo menos a mesma sagacidade e o mesmo esforço que colocam os homens em seus negócios materiais ou em alcançar um ideal humano. O fato de que contamos com a Graça de Deus não nos exime de colocar todos os meios humanos honestos e possíveis para levar uma vida de conversão, mesmo que isso possa levar a esforço heroico. Os homens colocam um enorme esforço em alcançar seus ideais terrenos de fama, riqueza, honra e beleza. O Senhor nos convida a que tenhamos um empenho igual ou maior para levar uma vida cristã autêntica e na propagação do Reino de Deus. E continua:
E eu vos digo: Usai o dinheiro injusto para fazer amigos,
pois, quando acabar, eles vos receberão nas moradas eternas.
O texto, ao falar sobre as riquezas injustas, se refere aos bens deste mundo que são adquiridos por procedimentos injustos. A misericórdia divina é tão grande que esta mesma riqueza injusta pode ser motivo de recuperação por meio da restituição, dos pagamentos de danos e prejuízos e depois excedendo nas esmolas, no incentivo às fontes de trabalho e bens, como foi visto em outra parte do Evangelho no caso de Zaqueu, chefe dos publicanos que se com prometeu a restituir o quádruplo do que tinha roubado e entregar metade dos seus bens aos mais necessitados.
Quem é fiel nas pequenas coisas também é fiel nas grandes,
e quem é injusto nas pequenas também é injusto nas grandes.
Por isso, se vós não sois fiéis no uso do dinheiro injusto, quem vos confiará o verdadeiro bem? E se não sois fiéis no que é dos outros, quem vos dará aquilo que é vosso?
Quando Cristo fala da fidelidade no pouco, faz referência às riquezas, pois estas são muito pouca coisa comparadas com os bens espirituais. Se o ser humano é fiel, generoso e desprendido no uso das riquezas efêmeras, receberá então o prêmio da vida eterna, a riqueza definitiva. Podemos também considerar o aspecto de que a vida humana, por suas circunstâncias próprias, é um aglomerado de coisas pequenas: quem não se dá conta disso, não poderá realizar as coisas grandes.
Podemos também considerar que a parábola do administrador infiel é uma imagem da vida do homem: tudo o que temos é dom de Deus: somos seus administradores e cedo ou tarde devemos prestar contas do que nos foi confiado. Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou odiará um e amará o outro, ou se apegará a um e desprezará o outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro.’
Se as pessoas são espertas no cuidado com as coisas perecíveis e supérfluas, devemos ser nós também espertos em relação à aquisição dos bens eternos. A dificuldade que as pessoas possam ter de configurar sua vida mais a Cristo numa vida de santidade está em que não se começa a ser fiel nas pequenas coisas. A ousadia dos maus vai se alimentando da timidez dos bons. Se o ser humano tem a habilidade de ser esperto para o mal, pode ele também ser esperto para o bem e para andar em uma vida de conversão cada vez mais. Que tenhamos ousadia, que sejamos espertos em fazer nossa parte de bem onde nos seja possível.
Por outro lado, essa esperteza aparece também no livro do profeta Amós, na primeira leitura (Am 8, 4-7):
Ouvi isto, vós que maltratais os humildes e causais a prostração dos pobres da terra; vós que andais dizendo: Quando passará a lua nova, para vendermos bem a mercadoria? E o sábado, para darmos pronta saída ao trigo, para diminuir medidas, aumentar pesos, e adulterar balanças, dominar os pobres com dinheiro
e os humildes com um par de sandálias, e para pôr à venda o refugo do trigo?’ Por causa da soberba de Jacó, jurou o Senhor: ‘Nunca mais esquecerei o que eles fizeram.
Faz parte da temática geral presente no Livro do profeta Amós a crítica à ganância de bens. E a crítica feita por Amós é exatamente pelo fato que a abundância de alguns passa necessariamente pela deficiência de outros e a de colocar o dinheiro como deus próprio de alguns. A denúncia de Amós se apresenta ainda como uma denúncia pertinente aos nossos dias, onde dentro de uma lógica do lucro desenfreado, se é capaz de reduzir o outro e a própria criação a meros instrumentos. Quanta exploração encontramos em relação aos irmãos. É nesse sentido que a vivência do Evangelho nos leva a consequências sociais muito claras. Não é por uma ideologia política que buscamos a justiça social, mas é uma questão de Evangelho. A palavra de Deus nos faz pensar no outro com carinho, como nosso irmão e não como objeto de exploração. Curiosamente é isso mesmo que nos fala a segunda leitura (1Tm 2, 1-8), quando nos convida a rezar pelos governantes:
Caríssimo: Antes de tudo, recomendo que se façam preces e orações, súplicas e ações de graças, por todos os homens; pelos que governam e por todos que ocupam altos cargos, a fim de que possamos levar uma vida tranquila e serena, com toda piedade e dignidade. Isto é bom e agradável a Deus, nosso Salvador; ele quer que todos os homens sejam salvos e cheguem ao conhecimento da verdade. Pois há um só Deus, e um só mediador entre Deus e os homens: o homem Cristo Jesus, que se entregou em resgate por todos. Este é o testemunho dado no tempo estabelecido por Deus, e para este testemunho eu fui designado pregador e apóstolo, e – falo a verdade, não minto – mestre das nações pagãs na fé e na verdade. Quero, portanto, que em todo lugar os homens façam a oração, erguendo mãos santas, sem ira e sem discussões.
Infelizmente vemos a ação dos responsáveis das ações pautada primeiramente no interesse próprio e deixando a questão do bem comum quase que em último lugar. É por esse motivo que a oração pelos governantes se apresenta como realidade constante na vida da nossa liturgia, para que governem com justiça e velem pelos interesses do povo. Os políticos e todos aqueles que pertencem à esfera do serviço público, dentro de uma realidade democrática, são representantes do povo, são servidores. Peçamos que nossos políticos não sejam corrompidos pelo exercício do poder nem das facilidades inerentes à sua função, mas que sejam promotores de paz e fraternidade. Eis aí algumas das consequências do Evangelho e da Palavra de Deus que nos foi dirigida.
A segunda leitura ainda segue falando da mediação única de Cristo e do desejo e oportunidade de salvação oferecidos aos homens de toda a terra e de todos os tempos. Paulo lembra também o horizonte da universalidade da salvação: é desejo do coração de Deus que todos os homens tenham acesso à plenitude que só o Evangelho pode oferecer. Um dos motivos da atividade evangelizadora da Igreja está exatamente nesse desejo de que todos os homens possam conhecer a verdade do Evangelho e passem a ter vida e vida em abundância.
Tantas são as consequências da vida que experimentamos de pessoas que vivem somente centradas em si mesmas, trazendo uma sociedade de injustiças e violências. Rezemos por nossos governantes para que governem com justiça; que não façamos de nós, vidas que servem ao dinheiro e que mesmo que tenhamos bens que os utilizemos para ajudar os outros, nunca para oprimir os outros. Que saibamos valorizar a dignidade humana. Que a palavra do Senhor nos faça caminhar mudando essa sociedade: homens novos a partir da novidade do Evangelho. Que Deus nos abençoe a todos.
Cardeal Orani João Tempesta
Arcebispo do Rio de Janeiro