Mais de um século já se passou – precisamente 130 anos – desde que a escravidão foi abolida no Brasil com a Lei Áurea. Passado todo esse tempo, porém, não se pode dizer que a prática foi extinguida, uma vez que cerca de 40 milhões de pessoas vivem em condições de trabalho escravo em todo mundo, segundo dados da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Neste domingo, 28, celebrou-se o Dia Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, data instituída pela lei nº12.064, de 29 de outubro de 2009. “Não se pode, em hipótese alguma, retroceder na política nacional de combate ao trabalho escravo, iniciada há mais de 20 anos. As autoridades precisam tomar consciência desta trágica realidade do trabalho escravo, que constitui um retrocesso para a humanidade”, afirma o presidente da Comissão Episcopal Pastoral para a Ação Social Transformadora da CNBB, Dom Guilherme Antônio Werlang.
“A diferença fundamental é que a escravidão é ilegal, e no passado constituía parte formal do sistema produtivo. Ao contrário do senso comum, o capitalismo não é incompatível com a escravidão, pois pessoas em condições vulneráveis podem ser reduzidas à escravidão e a produção ser inserida no circuito econômico”, explica o doutor em História, Moacir Santos.
Em outubro passado, o Governo Federal enfrentou duras críticas após tentar promulgar a Portaria 1129 do Ministério do Trabalho, por dificultar o combate a esse tipo de crime. Diante da repercussão, a portaria não chegou a ser promulgada, e uma nova portaria foi publicada em 1º de janeiro desse ano.
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) também se posicionou veementemente contra a Portaria 1129, considerando que ela eliminava proteções legais contra o trabalho escravo. “A desumana Portaria é um retrocesso que, na prática, faz fechar os olhos dos órgãos competentes do Governo Federal que têm a função de coibir e fiscalizar esse crime contra a humanidade e insere-se na perversa lógica financista que tem determinado os rumos do nosso país”, afirmou na época em nota.
Dom Guilherme observa que o trabalho da Igreja foi, e sempre será, de proteção aos direitos dos trabalhadores. “A Comissão Pastoral da Terra (CPT) foi pioneira neste trabalho, levando denúncias, inclusive, à ONU. Ela possui uma campanha permanente desde o ano de 1997, que se chama ‘De olho aberto para não virar escravo’ que ajudou a libertar milhares de pessoas”, informa.
Mas por que, então, o trabalho escravo ainda existe? Segundo Moacir, existem setores da economia que resistem à efetivação dos direitos dos trabalhadores e pressionam o governo para que faça vista grossa a estas atividades ilegais. “O agronegócio é o setor com maior interesse na redução das restrições ao trabalho escravo, resistente à modernização das relações de trabalho. Mas há setores ligados à indústria que apresentam histórico de desrespeito aos direitos dos trabalhadores, como o têxtil. Em comum, são trabalhadores que têm fragilidade social e reduzida qualificação”, explica.
Migração e o trabalho escravo
Nos últimos anos, o fenômeno da migração tem-se intensificado em todo o mundo. No Brasil, por conta da instabilidade política e econômica de alguns países vizinhos, centenas de estrangeiros desembarcam aqui em busca de uma vida melhor ― o que nem sempre acontece.
Por estarem em solo diferente daquele em que nasceram, tentando ser inseridos numa cultura adversa àquela em que se formaram, muitas vezes essas pessoas se tornam vítimas de empresas e marcas que os utilizam como mão de obra escrava. O doutor em História indica algumas atitudes para dissipar o trabalho escravo contemporâneo: “reforçar a fiscalização, manter a legislação reconhecida anteriormente e estimular a população a não consumir produtos relacionados a trabalho escravo”.
“Ninguém gosta de admitir que em sua própria cidade, região ou nação existem novas formas de escravidão, mas sabemos que esta chaga se encontra em quase todos os países. Este tem sido o grande trabalho da Igreja: denunciar, combater, chamar em causa o poder legislativo, que deve levar os agentes traficantes à justiça”, acrescenta Dom Guilherme.
O dinheiro é para servir e não para governar
Em sua exortação apostólica Evangelii Gaudium, o Papa Francisco afirma que “o dinheiro é para servir e não para governar”. Mas como aplicar este conceito num mundo predominantemente capitalista?
“Quando a economia é pensada somente a partir da acumulação, a consequência é o aumento da desigualdade social e exclusão que, por sua vez, gera violência e morte. Não porque os excluídos reajam de forma violenta, mas porque o sistema econômico pautado na promoção da desigualdade produz violência, na medida em que favorece o bem-estar de uma pequena parcela enquanto nega oportunidades de desenvolvimento a milhões de pessoas”, adverte Dom Guilherme.
Para Santos, as adversidades que a economia brasileira tem atravessado nos últimos anos não justificam a existência de trabalhos análogos à escravidão. “Não relaciono com a crise, mas sim às condições econômicas que geram vantagens para aqueles que exploram o trabalho escravo”, ponderou.
“Não dá para afirmar que ela [escravidão] foi abolida. Basta verificar, anualmente, o árduo trabalho da CPT, do Ministério Público, dos Fiscais do Trabalho e tantos outros, para coibir as práticas de trabalho escravo no Brasil”, acrescenta Dom Guilherme. “A Igreja tem um papel importante de cobrar dos governantes que tal política seja sempre mais fortalecida, que os infratores flagrados praticando trabalho escravo sejam punidos”, conclui o bispo.
Por Canção Nova