A audiência ao Corpo Diplomático constitui um dos eventos mais tradicionais do ano no Vaticano. Ao receber os embaixadores, o Papa formula seus votos de felicitações a todos os mais de 180 países com os quais a Santa Sé mantém relações diplomáticas. Mas, sobretudo, é a ocasião em que o Pontífice faz uma análise da atual conjuntura sociopolítica mundial.
A pandemia e suas consequências guiaram a reflexão de Francisco, identificando em seu longo discurso as crises que a Covid-19 provocou em escala global. O mundo está doente, afirmou o Papa, e não só por causa do vírus.
Crise sanitária
A doença e a morte ficaram muito mais palpáveis com a pandemia, o que leva a recordar o valor da vida, “de cada vida humana e da sua dignidade, em todos os momentos, desde a concepção no ventre materno até ao seu fim natural”.
Francisco manifestou sua dor com o fato de que muitas legislações no mundo se afastaram do seu dever primário de defender a vida, legalizando o aborto com o pretexto de garantir “pretensos direitos subjetivos”.
Mais uma vez o Pontífice renovou seu apelo para que os cuidados na área na saúde, como as vacinas, por exemplo, estejam à disposição de todos, sobretudo dos mais vulneráveis. Recordando, porém, que é responsabilidade de todos manter um comportamento responsável para si e para os demais.
Crise ambiental
Contudo, constatou o Papa, “não é apenas o ser humano que está doente, a nossa Terra também”. Francisco citou a exploração indiscrimanada dos recursos naturais e as mudanças climáticas, que provocam, por sua vez, insegurança alimentar e desastres ambientais. Burkina Faso, Mali, Níger e Sudão do Sul foram alguns dos países destacados. Mas também a Austrália e a Califórnia.
Crise econômica e social
No campo econômico, a pandemia obrigou muitos países a adotarem quarentenas e lockdowns para conter a difusão do vírus, com o consequente aumento do desemprego e da vulnerabilidade social. Crises humanitárias foram acentuadas, como o tráfico de seres humanos, a exploração da prostituição e o fluxo migratório. O Papa mencionou a tensão na região moçambicana de Cabo Delgado, na Síria e no Iemên. E as violações cometidas contra milhares de deslocados, refugiados e repatriados.
Esta crise evidenciou que é necessária uma “nova revolução copernicana”, que coloque de novo a economia a serviço do homem e não vice-versa. E recordou que a Santa Sé considera ineficaz a lógica das sanções de um país contra o outro.
“Oxalá esta conjuntura que estamos a atravessar sirva, igualmente, de estímulo para perdoar ou, pelo menos, reduzir a dívida que pesa sobre os países mais pobres, impedindo efetivamente a sua recuperação e pleno desenvolvimento.”
Crise política
A política também sofreu de Oriente a Ocidente, mesmo em países de longa tradição democrática. O Papa constatou um “aumento das contraposições políticas e a dificuldade, senão mesmo a incapacidade, de procurar soluções comuns e partilhadas para os problemas que afligem o nosso planeta”.
E encorajou os países a empreenderem reformas. Manifestou sua satisfação com o Tratado para a Proibição das Armas Nucleares, com sua iminente viagem ao Iraque e o prolongamento do Acordo Provisório entre Santa Sé e China sobre a nomeação dos Bispos. “Trata-se de um entendimento de caráter essencialmente pastoral e a Santa Sé espera que o caminho percorrido continue, em espírito de respeito e mútua confiança.”
O Papa desejou paz para Mianmar, Líbano, Terra Santa e Líbia e fez votos de que em 2021 se possa inscrever a palavra “fim” no conflito na Síria.
Paz também para a República Centro-Africana, Coreia. Para a América Latina, os votos são para que se consiga aliviar as tensões políticas e sociais, “cujas raízes se encontram nas profundas desigualdades, nas injustiças e na pobreza, que ofendem a dignidade das pessoas”.
O terrorismo também preocupa o Santo Padre, que com frequência atinge os locais de culto, “com uma consequência direta da defesa da liberdade de pensamento, consciência e religião”.
Crise dos relacionamentos humanos
Mas para Francisco, há uma crise que talvez seja a mais grave de todas: a crise dos relacionamentos humanos, expressão de uma crise antropológica geral.
O Papa manifestou sua preocupação com a “catástrofe educativa”, acirrada com a pandemia, que evidenciou a desigualdade no acesso à instrução, relegando milhões de estudantes a um limbo pedagógico.
A Covid-19 impactou também nos relacionamentos familiares, com o aumento da violência doméstica e nas limitações da liberdade religiosa.
“Um bom cuidado do corpo nunca pode prescindir do cuidado da alma”, disse Francisco, que concluiu:
“O ano de 2021 é um tempo a não perder; e não se perderá na medida em que soubermos colaborar com generosidade e empenho. Neste sentido, considero que a fraternidade seja o verdadeiro remédio para a pandemia e os inúmeros males que nos atingiram. Fraternidade e esperança são remédios de que o mundo precisa, hoje, tanto como as vacinas.”