A espiritualidade da Quaresma

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Embora quase esquecido, há, porém, um paradigma na teologia que não perdeu a sua validade, segundo pensa muita gente boa, inclusive modestamente eu. O esquema é este: À uma espiritualidade ou religiosidade vertical corresponde outra horizontal. Dizendo de outro modo, vertical é a relação pessoal com Deus, “Eu e Deus”, e a horizontal, a relação pessoal com os outros e o mundo, “Eu e os outros e o mundo”. Com outras expressões, diz-se vertical a que se refere à caridade-justiça de Deus ou para com Deus e a horizontal, à caridade-justiça social ou para com os outros. Como se pode perceber, é uma explicitação dos dois mandamentos da caridade: 1- “Amarás ao Senhor teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua mente”; 2- “Amarás ao próximo como a ti mesmo”. Aquele é o maior e o primeiro mandamento. Este é semelhante àquele, mas é o segundo mandamento, conforme Jesus explica em Mateus 22, 36-39. Que quero dizer com isto? Exatamente, chamar a atenção para frisar que embora as duas espiritualidades sejam semelhantes, no entanto, a vertical é a primeira, e a horizontal a segunda. Ou seja, os deveres para com Deus vêm em primeiro lugar e em segundo os para com o mundo da criação. Em outros termos, os direitos de Deus sobre cada um de nós precedem aos direitos que os outros e o mundo têm sobre nós. Os direitos de Deus e as obrigações que temos para com Deus expressam-se em tudo o que concerne à sua santa vontade e em suas leis. Basicamente, nossas obrigações consistem em conhecer a vontade de Deus para vivê-la, em observar os seus mandamentos e ensinamentos, em praticar as virtudes e as obras de misericórdia e em vencer as tentações e evitar todo pecado que é sempre uma ofensa feita a Deus pela desobediência à sua lei. Como dizemos que Deus é amor e fomos criados à sua imagem e semelhança, amar é tudo na vida, é, enfim, o absolutamente essencial. Por isso, o essencial na vida cristã é o primeiro mandamento: “Adorar a Deus e amá-Lo sobre todas as coisas”. De tal maneira, com toda razão, a teologia nos diz que por causa do amor a Deus segue-se o amor aos outros e entre estes aos pobres e sofredores. Como sabemos, desde o relato de Caim e Abel, toda a Bíblia está marcada pelo amor de predileção de Deus pelos fracos e maltratados da história humana. O amor ao próximo, por conseguinte, é também essencial, mas é o segundo mandamento, o que decorre daquele amor primeiro de Deus, a quem por primeiro devemos amar. Pode-se dizer com toda certeza que amar assim como Deus nos ama e ama a sua criação deve ser a razão da nossa vida, é o que dará sentido à nossa vida, é o que nos possibilitará ser santos como o Pai do céu é santo. Em suma, é o que nos fará ser cristãos, ser discípulos de Jesus, isto é, seguir o modelo de quem se identificou com os seus “irmãos mais pequeninos” (Mt 25,40.45) e fez uma opção clara pelos excluídos do seu tempo.

Por que faço esta introdução na reflexão sobre a Quaresma? Porque hoje em dia, sobretudo, na sociedade afastada de Deus tudo virou horizontalidade. Nada ou pouco se fala de Deus. Veja, por exemplo, o projeto de intervenção federal na segurança no Rio e o anúncio da criação do Ministério da Segurança Pública, empreendidos pelo governo federal para o enfrentamento do grave problema da violência. A Campanha da Fraternidade trabalha o mesmo tema, que a Igreja desde o ano passado reconheceu-o como o maior problema da atualidade brasileira: a violência e a sua superação. É evidente que o Estado e a Igreja são instituições diferentes. Portanto, cada uma enfoca o tema a partir da sua identidade e peculiaridades.  No entanto, já que nossa nação é cristã é de se perguntar: os pressupostos básicos da nossa fé em Deus, da fraternidade humana fundada na paternidade do mesmo Deus, dos princípios filosóficos da ética cristã, dos valores morais, dos mandamentos de Deus, das leis divinas e naturais, presentes no projeto da Campanha da Fraternidade, fundamentam também, ao menos de longe, os referidos projetos de segurança do governo federal?

Pois bem, conforme a espiritualidade quaresmal, a conversão consiste em que, primeiramente, eu e você ou nós cristãos devemos voltar-nos para Deus e procurá-Lo com todo o coração como primeiro passo para podermos convocar toda a sociedade a se colocar também diante de Deus e a ouvir a sua voz convidando todos à conversão. Porquanto, como fica evidente, a conversão passa pela pessoa, deve começar com cada um de nós, depois pelos outros da comunidade e da sociedade. A conversão deve começar comigo e com você, prezado leitor. Nós precisamos voltar o coração para Deus pelos exercícios quaresmais da “oração, jejum e esmola”, e buscar a reconciliação mediante os sacramentos e a celebração pascal da paixão, morte e ressurreição do Senhor. A conversão que nos leva a mudar muita coisa em nossa vida é que renova em nós atitudes e comportamentos e que, por fim, devolve a paz ou a faz crescer em nossos corações. Por isso, a Igreja, mãe e mestra, nos ensina que somente homens e mulheres convertidos e pacificados poderão ser pacificadores e promover a justiça, a paz, a reconciliação e a fraternidade ao redor, na sociedade e no mundo. Em síntese, não haverá nunca mundo novo sem homens e mulheres novos.  A superação da violência passa pela conversão pessoal. Essa é a convocação primeira da Liturgia quaresmal para que a Campanha da Fraternidade possa ser eficaz e produzir resultados. Sem esta premissa também os projetos do governo federal para o enfrentamento da violência pouco ou nada hão de realizar.

Neste segundo domingo da Quaresma o Evangelho de Marcos 9, 2-10 relata a transfiguração de Jesus no Tabor. A glória e ressurreição de Jesus, depois de sua paixão e morte, ensinam que também a glória e a transfiguração futura do ser humano pecador passam pela penitência, conversão e mudança de vida.

Por Dom Caetano Ferrari – Diocese de Bauru