Que tipo de espiritualidade tem que ter um bispo?

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Para quem leu o artigo anterior que falava sobre a missão do bispo, ou seja, o seu dever premente de ensinar, santificar e governar uma diocese pôde perceber que na conclusão já fazíamos uma alusão ao que estudaríamos nessa terceira e penúltima catequese sobre a figura episcopal e sua importância para a Igreja Católica de maneira geral e, particularmente, para a Diocese de Uruaçu. Encerramos apontando para duas realidades essenciais na vida de quem foi chamado ao episcopado, isto é, a espiritualidade e as virtudes próprias daquele que exercerá legítima e piedosamente o seu múnus (serviço). Tanto uma quanto a outra são vastíssimas em seus significados, e ainda mais quando ligadas a uma pessoa e ao seu encargo, mas, aqui, desceremos apenas aos detalhes que nos chamar mais a atenção e, em nossa percepção, serão úteis para acompanhar gradualmente o nosso novo pastor diocesano Monsenhor Giovani Carlos Caldas Barroca que já está às portas dessa nossa estimada e histórica Diocese.

Uma introdução à “espiritualidade” nos ajudaria a compreender não somente o termo, mas também a aplicação dele na vida espiritual do bispo. A palavra “espiritualidade” é usada atualmente de uma forma muito elástica e possui vários significados, pois não é vista mais apenas dentro de um âmbito religioso propriamente dito (“divina” ou “angélica”), mas hoje muitos a entendem como “entusiasmo” ou “filosofia mística”, apesar de que o nosso conceito se fixará no território teológico e eclesiástico indicando uma existência em comunhão com Deus, uma vida que vem da fé em Jesus Cristo movida pelo Espírito Santo.

E por falar em “espírito”, a origem da palavra espiritualidade vem do grego (pneumatikós) que quer dizer “de acordo com o espírito” ou “cheio do espírito”. Que em latim ficaria spiritus. Assim, quando falamos em espiritualidade queremos dizer que é a vida que vem Deus, um dom sobrenatural que está para além da pura materialidade. Em outras palavras, é uma arte de viver espiritualmente conforme os ditames do Espírito Santo. É o caminho do deixar-se formar e mudar cada vez mais pelo Espírito de Jesus. Não é difícil notar a centralidade do “Espírito Santo” quando falamos em “espiritualidade”. Trazendo o tema para uma ambiência eclesial e cristã genuínas, em que vislumbramos uma seara vastíssima de caminhos espirituais oriundos da vida bi-milenar da Igreja Católica, podemos citar uma multiplicidade de fontes (cada uma com sua especificidade): espiritualidade de caráter beneditino (que colocava a liturgia e a vida em comunidade como centro), a espiritualidade franciscana (para qual a pobreza e a liberdade interna são os seus sustentáculos), a espiritualidade inaciana (que possuem os conhecidos “exercícios espirituais” para se conseguir ou aperfeiçoar as virtudes), a espiritualidade mística (que valoriza a união com Deus), a espiritualidade mariana (a qual tem Maria Santíssima como modelo e símbolo da confiança e fé em Deus), e muitas outras. E como falamos acima que o termo “espiritualidade” é flexível a muitas outras formas de vida no cotidiano (não somente no cristianismo), alguns teóricos ainda arriscam dizer que ela está presente também, em tons “entusiasmados” (e a palavra já aponta para uma “força mística” da pessoa), no trabalho, nos relacionamentos, nas decisões da vida, na nossa missão ou objetivos que traçamos em nossa existência histórica. Diante dessa pequena nota sobre a “espiritualidade”, enfatizamos que a vida espiritual do bispo passa necessariamente pela via teológica e eclesial do Espírito Santo como fonte de sua vocação e missão episcopal, e não pela via “filosófica” ou “entusiasmada” como centro de suas “apaixonadas cosmovisões”.

Um texto bíblico poderia nos servir de base para falarmos sobre a espiritualidade do bispo. Está nas palavras de São Paulo a Timóteo: “Exercita-te na piedade… sê modelo dos fieis na palavra, na conduta, na caridade, na fé, na pureza… Não descures o dom espiritual que está em ti… Cuida de ti mesmo e da doutrina e sê perseverante” (1 Tm 4, 7.12.16). Esse fragmento do epistolário paulino poderia resumir a nossa proposta desse artigo, pois contém tanto as virtudes quanto a espiritualidade do sucessor dos apóstolos. Mas vamos aos pormenores. São Paulo fala de “um dom espiritual que está em ti”, fazendo-nos lembrar do que rezamos na Oração Eucarística IV que diz: “… o Espírito Santo, como primeiro dom aos vossos fieis…”, e ainda confirma o que nos ensina o Diretório para o Ministério Pastoral dos Bispos em seu capítulo II: “Com a consagração episcopal, o bispo recebe uma especial efusão do Espírito Santo”. Essas três referências afastam toda a dúvida de que o bispo não possui a “plenitude do Espírito Santo” em sua própria pessoa pelo fato de que ele todo já está configurado com Cristo (que nos prometeu e enviou o Espírito Santo a toda a Igreja – At 2, 1-4). Tal configuração ainda nos eleva ao pensamento de que o bispo é chamado a compartilhar a vida de quem o chamou, viver segundo a palavra de quem o ensinou, buscar a santidade de quem o convida a ser santo, guiar o rebanho no qual ele mesmo é ovelha antes de ser pastor. E nessa comunhão profunda com Jesus Cristo, pela ação do Espírito Santo, o bispo sofre uma “transformação ontológica” exclusiva em si mesmo, ou seja, o seu ser abre espaço para que o ser de Cristo esteja em evidência sem que ele mesmo perca tudo o que possui por natureza. Essa configuração plena à pessoa de Cristo pela efusão do Espírito dá ao bispo a possibilidade de nutrir uma forma de espiritualidade específica em seu ministério para desempenhar com amor e incansável dedicação a sua tarefa. E quando falamos em “espiritualidade específica” nos referimos às particularidades imprescindíveis em sua vida espiritual, ou seja, uma “espiritualidade tipicamente eclesial”, uma “espiritualidade mariana” e uma “espiritualidade orante”. E esse tripé espiritual combina, assim podemos aludir, com as formas de espiritualidade vistas acima e com o que escreveu São Paulo, pois a espiritualidade eclesial diz respeito à “doutrina”, a espiritualidade mariana faz referência ao “modelo dos fieis”, e a espiritualidade orante diz do “exercício da piedade”. Vejamos cada uma dessas “espiritualidades episcopais”.

A vida espiritual é sempre uma exigência para o cristão, imaginemos para aquele que é bispo, pois para exercer um serviço tão sublime na Igreja precisa ter força de ânimo (spiritus), coragem e confiante abandono à ação interior do Espírito Santo. Em outras palavras, precisa de espiritualidade, “ser íntimo àquele que é mais íntimo do que nossa intimidade” como dizia Santo Agostinho. Por isso mesmo que o bispo, antes de tudo, precisa alimentar uma espiritualidade eclesial. Essa diz respeito a uma qualidade que já aludimos em outro artigo que é a “comunhão” (ou sentimento colegial entre os bispos entre eles e eles com a comunidade de fieis). E tanto a colegialidade (como imagem da comunhão) e a própria comunhão nascem na Igreja e para a Igreja. E o bispo é para a Igreja. A Igreja chama de “espiritualidade de comunhão” (ou eclesial) pelo fato de que esta é uma familiar convivência do bispo com todos dos filhos de Deus em virtude do seu chamado a unir o rebanho ao redor de si e não afastá-lo de si. Quando Jesus proferiu o “Sermão da montanha”, ele sentou-se e “os seus discípulos aproximaram-se dele” (Mt 5, 1); isso mostra a essência dessa espiritualidade episcopal: o bispo está unido a todos os fieis e estes a ele no mistério de Cristo no Espírito Santo. A aproximação do bispo ao seu povo está para além de um sentimento humano, mas já se configura a uma espiritualidade no sentido mais genuíno do termo, ou seja, aquilo no qual ele se transformou é oceano vasto de mistério em que todos podem mergulhar. Essa “comunhão”, podemos assim afirmar, cria “comunidade”. E a comunidade pode ser entendida como toda a sua diocese, todos os fieis que estão nesse território confiado ao bispo. Dissemos acima que essa espiritualidade eclesial diz respeito à “doutrina”, e isso faz todo o sentido, pois nada mais é prezada na doutrina e nos ensinamentos eclesiais do que a união entre todos em virtude da graça, algo que aprendemos da intimidade de Jesus com o Pai quando rezou: “Como tu, Pai, estás em mim e eu em ti, que também eles estejam em nós” (Jô 17,21). Assim, nutrir uma espiritualidade eclesial faz do bispo um sinal forte de comunhão entre todos, sem rupturas, a ponto de ele mesmo nos dizer com voz forte como gritou o bispo Santo Inácio de Antioquia à comunidade dos magnésios: “Que não haja nada entre vós que vos possa dividir, mas uni-vos ao bispo como sinal e ensinamento de incorruptibilidade”.

Outra forma de espiritualidade do bispo é a “mariana”. Desde os primórdios da Igreja, a figura de Maria é destacada e venerada entre todos dos cristãos. Eram devotos de Maria, espiritualmente falando, desde as nossas origens. Reza a tradição que na oração mais antiga que se tem registro, direcionada à Virgem Maria, os já “marianos” suplicavam: “À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus! Não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades…”. Se a Mãe de Jesus esteve presente em todas as etapas de sua vida e dos primeiros cristãos, por que não estaria presente na vida do bispo? A Igreja é sábia em incluir na vida espiritual do episcopado uma fonte de inspiração que tem a Mãe de Deus como guia em sua missão. O bispo São Francisco de Sales já escrevia em uma de suas obras: “Confio todos os meus serviços a Deus sob a proteção de sua Santíssima Mãe”. São João Paulo II exclamava: “Minha oração predileta é o Santo Rosário!”. Ensinando-nos, assim, o valor de Maria no crescimento espiritual dos que honram aquela que é “cheia de graça” (que rezamos em toda Ave Maria). De tudo isso podemos então perceber que a espiritualidade do bispo necessita da presença de Maria, da sua proteção, da sua luz, enfim, é uma espiritualidade com “perfil marial”. Há um vínculo indissolúvel entre Nossa Senhora e o sucessor legítimo dos apóstolos. Dissemos acima que o bispo tem uma configuração especial a Cristo pelo Espírito, e a Igreja nos ensina que “Maria apóia o bispo no seu esforço interior de conformação com Cristo e no seu serviço eclesial” (Diretório para o Ministério Pastoral dos Bispos). A expressão “esforço interior” nos chama muito a atenção pela razão de nos fazer pensar que não se tem uma espiritualidade fecunda sem que a Mãe de Deus esteja conosco e, de maneira particular, esteja presente e atuante na vida do bispo. Isso nos faz refletir também que, em Maria, o bispo tem inscrições abertas para se matricular e lugar garantido na “Escola de Maria”, pois ali ele aprenderá a melhor disciplina para o seu exercício ministerial eclesial: a santidade. E se é escola, e nunca um bispo deixa de aprender, Maria é Mestra que estará sempre lhe ensinando a contemplar os grandes mistérios da salvação e poder transmiti-la ao seu povo fidedignamente. De Maria o bispo poderá haurir virtudes magníficas como o silêncio interior, a obediência, a pobreza, a disponibilidade exclusiva do “Faça-se em mim”, a alegria do sofrimento por amor e, por seu “esforço interior”, ser modelo de oração e fidelidade para todos os fieis (como disse São Paulo a Timóteo). Alimentando-se da espiritualidade mariana em seu interior, o bispo se torna um mariano por excelência! Monsenhor Giovani Carlos Caldas Barroca não terá nenhuma dificuldade em ser um “modelo mariano” em nossa diocese, pois ela é totalmente dedicada ao “Imaculado Coração de Maria”. E, assim, em forma de súplica, os já “teus diocesanos” vem rezando faz algum tempo em suas paróquias em preparação à sua esperada posse: “Ó Maria, de Imaculado Coração… intercedei por nosso novo pastor eleito…”. O bispo que se confia à Maria Santíssima e à sua maternidade espiritual está sempre diante daquela que intercederá por ele e diz: “Fazei o que ele vos disser” (Jo 2,5). Isto é, “pede à Mãe que o Filho atende…”.

Por fim, a vida espiritual do bispo é também movida pela oração, que demos o nome de “espiritualidade orante”. Voltemos ao texto de São Paulo onde ele exorta a Timóteo: “Exercita-te na piedade”. E aqui queremos unir à oração aquele segundo fator importante na vida do bispo que é a “virtude” ou, como enfatizamos, “as virtudes próprias daquele que exercerá legítima e piedosamente o seu múnus (serviço)”. Veja que colocamos na mesma frase os termos “virtude” e “piedosamente” (mesma expressão usada por São Paulo: “piedade”). Antes, vamos compreender o que é a “virtude”. A palavra vem do grego (areté) e do latim (virtus) que quer dizer “prática”, “exercício” (como em São Paulo), “qualidade”, “excelência” (moral) e outros muitos significados. A prática da virtude é por sua natureza árdua e trabalhosa. Os místicos da Igreja sempre acreditaram que a virtude, efetivamente, mesmo que seja um caminho estreito, cheio de pedras pontiagudas que firam os pés (por causa da disciplina rigorosa que ela exige), torna feliz aquele que a pratica. E o valor do sacrifício que contém a virtude pode se tornar uma fonte extraordinária de espiritualidade para quem a “exercita piedosamente”. Eis aqui o elo que queremos fazer entre a oração e a virtude. Ou a oração como uma virtude que dê força para que o bispo cumpra a sua missão em uma diocese. Nesse sentido, já podemos entender que o bispo, orando, é um homem virtuoso; e quando é virtuoso, ele ora. Dentre muitas virtudes que o bispo deve ter (ou pelo menos virtuosamente buscará ter), destacamos apenas algumas: a fé, esperança e caridade (que chamamos de teologais); a caridade pastoral (é o amor pelo ofício ou pela missão confiada); prudência pastoral (é a arte do bom governo para a realização do plano divino da salvação e do bem das almas e de toda a Igreja); a fortaleza e a humildade; a obediência à vontade de Deus; o celibato e a perfeita continência; a pobreza; o exemplo de santidade; e outras virtudes que chamamos de “dotes humanos”: a sinceridade, compaixão, inteligência aberta ao conhecimento etc. Podemos nos perguntar diante de tantas virtudes que o bispo deveria ter: é possível sem a oração? Um conceito rápido de oração temos na tradição mística da Igreja que nos diz ser ela um “exercício espiritual” (ou seja, é uma virtude do espírito); ela é ainda “a predominância dos piedosos afetos pelos quais expressamos nosso amor a Deus” (ou seja, foi a virtude que São Paulo pediu a Timóteo); e ainda a oração é um “diálogo com Deus” (isto é, uma conversa íntima e habitual). Disso podemos responder à pergunta acima com toda a certeza: não é possível ser um bispo virtuoso sem a oração. Por isso mesmo que é uma espécie de “imperativo categórico” a espiritualidade orante na vida do bispo, pois sem a oração na há fecundidade espiritual, não há intensidade em sua vida de união com Deus, não terá luz, força e conforto em sua lida pastoral. Nos diz o próprio Diretório para o Ministério Pastoral dos Bispos: “A oração é para um bispo como o bastão a que se apóia na sua caminhada de cada dia”. E nada mais pesa na vida de qualquer homem de Deus, principalmente na vida do bispo, do que o cotidiano recheado de desafios e dificuldades de toda ordem. Por isso mesmo que a oração é essa força interior extraída dos seus exercícios espirituais, dos seus piedosos afetos e do seu demorado e frutuoso diálogo com Deus. Para cada situação grave em sua vida a resposta do bispo deve ser a sua oração diante de Deus, porque o sente ao seu lado e encontra nele refúgio, paz interior e sabedoria para cumprir o tríplice múnus de ensinar, santificar e governar (já falados no artigo anterior). A Igreja o admoesta sempre a não se esquecer que a maior forma de oração ou maneira de exercitar a sua “espiritualidade orante” é a Santa Missa, meditar a Liturgia das Horas, doar o seu tempo à adoração eucarística, rezar o Terço e colar à Sagrada Escritura a sua inteligência para compreendê-la, vivê-la e ensiná-la. Assim, o bispo encontra na oração um eficaz meio para alimentar a sua alma, exercitar-se nas virtudes e cumprir aquilo que São Paulo disse a Timóteo: “Exercita-te na piedade”, ou de outra forma, “exercita-te na oração”.

Portanto, ao chegar ao final desse artigo sobre a pergunta: Que tipo de espiritualidade tem que ter um bispo?, asseguramo-nos que ele não deve prescindir ou descuidar da sua comunhão com a Igreja, não deve jamais se esquecer de Nossa Senhora e ser assíduo na oração. O aperfeiçoamento dos fieis depende de um que esteja à altura desse chamado à perfeição que é o bispo, pois ele é mestre, promotor primeiro e exemplo de unidade em sua diocese. O bispo ao exercer a sua “paternidade” em uma diocese precisa necessariamente do auxílio materno de Nossa Senhora, sem ela a orfandade atinge não somente o pastor do rebanho, mas também o próprio rebanho. Que no coração do bispo tenha um espaço aberto e grande para os melhores afetos direcionados a Deus por meio de sua oração, pois daí brotarão virtudes excelentes que darão norte seguro ao seu povo e trará e fortificará a fidelidade à sua missão. Sem espiritualidade o bispo não suportará os desafios que lhe acobertarão quais ondas em mar bravio e agitado. E não é assim que se encontra o nosso mundo? A nossa sociedade atual não tem a característica de ser levada para todos os lados pelos ventos da secularização? A complexidade em todas as áreas da vida humana não encoraja o bispo a tomar alguma posição perante tal situação? E onde se encontra a figura do bispo nesse cenário? Todas essas perguntas nos projetam para a última pergunta dessas catequeses: Qual é o papel do bispo perante os desafios atuais sendo ele, além de um sujeito religioso, também um expoente moral da ordem social? Até o nosso último encontro.

Pe. Edvaldo Celestino de Melo

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